Após tarifaço, argentinos são forçados a mudar hábitos de consumo
Para se adaptar, cidadãos formam grupos de compra, trocam escola e vendem roupas usadas
O assunto se repete, diariamente, em conversas de café, na porta das escolas, nos escritórios e, principalmente, em reuniões sociais: como adaptar um orçamento cada vez mais limitado ao aumento, expressivo, do custo de vida na Argentina. Depois do tarifaço anunciado pelo governo Mauricio Macri em abril — o transporte público foi reajustado em 100% — este mês foi a vez dos combustíveis, que subiram 10%. No próximo mês de junho, já se sabe que a passagem do metrô portenho passará de 4,50 pesos (US$ 0,31) para 7,50 pesos (US$ 0,51). Macri disse recentemente entender “a dor e a raiva” dos argentinos, mas insiste em justificar um ajuste que já provocou queda de 2,3% no consumo das famílias nos primeiros quatro meses do ano, frente ao mesmo período do ano passado, de acordo com pesquisa da empresa de consultoria CCR.
— Entendo a dor e a raiva quando as pessoas veem os aumentos. Seria feliz se não tivesse que ter aplicado aumento algum, mas a economia estava à beira do colapso, deixaram (os governos Kirchner) o Banco Central sem reservas e o país isolado do mundo — declarou o chefe de Estado, tentando acalmar os ânimos de uma sociedade cada vez mais angustiada com o cenário econômico.
O tarifaço de abril representou um golpe duro no bolso dos argentinos. Em alguns casos, os reajustes das tarifas de energia elétrica e água chegaram a 300%. Isso, somado a uma inflação que atingiu cerca de 12% entre janeiro e abril, alimentada, principalmente, pela desvalorização de quase 40% do peso em dezembro passado, obrigou a maioria da população a modificar hábitos de consumo.
ABASTECENDO EM OUTRO PAÍS
A jornalista Macarena Rawson Paz criou 46 grupos na rede social Facebook, que ajudam mais de 200 mil pessoas, de todo o país, a conviver com a recessão e a inflação alta.
Um dos grupos, lançado por Macarena há menos de um mês, é o “Cheap 2 Cheap Go Market”, que já tem oito mil integrantes e organiza compras comunitárias em supermercados de atacado. Segundo a jornalista, separada e mãe de cinco filhos, “assim conseguimos poupar, em alguns casos, até 50%“:
— A situação econômica explica o sucesso dos grupos. Já estou preparando o “Cheap 2 Cheap Pool”, que vai ajudar as pessoas a economizar gasolina dividindo o carro, por exemplo, no caso dos que moram longe de Buenos Aires e trabalham na capital. Muitos apoiamos e votamos por este governo, sabendo que viria este ajuste. Hoje estamos, todos, vendo como nos acomodamos melhor.
O primeiro grupo começou com 400 membros, em março do ano passado, e hoje já tem 18 mil pessoas que todos os dias compram e vendem roupas e objetos usados, em bom estado, no momento em que renovar o armário nas lojas portenhas tornou-se praticamente inviável.
Algumas famílias argentinas foram obrigadas a adotar medidas mais drásticas, como mudar as crianças de escola, em alguns casos, até mesmo para escolas públicas (cuja qualidade de ensino piorou muito nas últimos décadas). Mas, em geral, os cortes no orçamento familiar são menos dolorosos e afetam mais consumos considerados de luxo, como restaurantes e hotéis. Neste setor, a queda do faturamento já atingiu 30%, desde o começo do ano.
— Estamos resistindo, com a melhor intenção de não começar com demissões — admitiu o presidente da Federação Empresárial de Hotelaria e Gastronomia, Roberto Brunello.
Filas de automóveis na Argentina cruzam a fronteira com o Paraguai e o Brasil para encher os tanques de combustíveis e aliviar a escalada inflacionária que agora afetou o preço da gasolina. O fenômeno é registrado nas províncias nordestinas da Argentina, Misiones, Formosa e Corrientes, que fazem fronteira com os vizinhos. Os consumidores conseguem o litro do combustível por um preço entre US$ 0,30 e US$ 0,50 mais baratos que nos fornecedores nacionais. A prática ainda não fez cair a venda de combustíveis no país, mas o consumo de eletricidade recuou 9,4% em março passado, confirmou a Fundação para o Desenvolvimento Elétrico.
INFLAÇÃO ESTIMADA EM 35% AO ANO
Em seu relatório, a CCR mostrou que o parcela dos chamados “consumidores racionais”, aqueles que pensam antes de fazer uma compra, aumentou de 42% para 51% entre 2015 e os primeiros meses deste ano.
— Desvalorização, ajuste e aumento de tarifas levam, inevitavelmente, à queda do consumo interno. O que estamos vivendo era esperado. No segundo semestre, os aumentos salariais que já estão sendo negociados impedirão que o consumo continue caindo, mas não vai subir — disse a economista Soledad Pérez Duhalde, da empresa de consultoria Abeceb, que projeta inflação entre 35% e 36% para este ano.
Um dos mais afetados pela retração da demanda interna são os supermercados. Muitos argentinos passaram a comprar marcas mais baratas e frequentar supermercados que vendem no atacado. Em março, as vendas caíram 8% em relação ao mesmo mês de 2015, prejudicando, principalmente, o consumo de bens duráveis e produtos de perfumaria. A demanda por alimentos e bebidas, de acordo com a Associação de Supermercados Unidos, também não caiu tanto.
Perguntado sobre a crise econômica em seu próprio país e ao clima de insatisfação crescendo pelo aumento da pobreza, da inflação e do desemprego, o presidente Mauricio Macri mostrou-se confiante, em sua primeira entrevista coletiva com correspondentes estrangeiros, realizada ontem:
— Estamos numa transição difícil, mas a estamos percorrendo mais juntos do que nunca. No segundo semestre a inflação vai cair drasticamente.
Invasão ‘hermana’: produtos argentinos avançam nas prateleiras
Medidas do novo governo da Argentina elevarão ainda mais a oferta de itens
Primeiro, vieram os alfajores Havanna. Depois, os sorvetes de doce de leite Freddo. Duas das principais marcas argentinas planejam até 50 novos espaços no Brasil neste ano e investimentos, somados, de R$ 13 milhões. E é só o início de uma maior oferta de itens dos hermanos no varejo brasileiro. Movimento que, segundo economistas e especialistas em comércio exterior, será ampliado com as mudanças promovidas por Mauricio Macri, que assumiu a Presidência argentina no fim de 2015 e derrubou as alíquotas de exportação de boa parte dos produtos. Na última semana, o governo Macri chegou a um acordo com os “fundos abutres”, que haviam rejeitado propostas anteriores de reestruturação de dívida. Isso pode ajudar a Argentina a voltar ao mercado de crédito internacional, e as empresas terão acesso a dinheiro mais barato no exterior.
Nas principais redes de varejo brasileiras, essas mudanças já se refletem em maior oferta de itens. É o caso das famosas carnes argentinas, como a picanha e o bife de chorizo. Nelson Raymundi Filho, gerente geral comercial do Grupo Pão de Açúcar, conta que no fim de 2015 voltou a importar carnes:
— Fizemos visitas a frigoríficos argentinos e retomamos as parcerias. Com a mudança de governo, houve equalização do câmbio, o que facilita a compra dos produtos de lá. E o governo criou incentivos aos frigoríficos locais, que os repassaram.
A competitividade é citada por Alex Ribeiro, diretor comercial do Prezunic, do grupo chileno Cencosud. Somente neste ano, a rede vai mais que dobrar a quantidade de itens argentinos nas gôndolas, com a chegada de cinquenta produtos. A lista é diversa: doce de leite Vacalin, alfajor, queijos, peixes e carnes.
— Os produtos argentinos estão competitivos em relação aos brasileiros e europeus. Na Argentina, a cadeia de custo é menor, seja na carga tributária ou nos impostos trabalhistas — diz Ribeiro. — No segundo semestre, o crescimento será ainda maior.
Segundo Leonardo Paz Neves, professor de Relações Internacionais do Ibmec/RJ e coordenador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, a expectativa é de aumento da venda de grãos e itens manufaturados:
— Macri derrubou as barreiras tarifárias e, agora, as empresas poderão acessar recursos externos, aumentando sua competitividade. Enquanto o Brasil se enfraquece, a Argentina tende a se fortalecer no comércio exterior.
No caso dos vinhos, mesmo com o aumento da carga tributária no Brasil, Jones Valduga, diretor da Domino Importação, conseguiu ampliar o limite do prazo de pagamento, de 75 para 105 dias. Com isso, diz, pôde gerir melhor o fluxo de caixa:
— Consigo importar mais. A previsão é de crescimento de 15% este ano com novos rótulos.
A Havanna pretende chegar a 320 lojas no Brasil em cinco anos — das quais 40 em 2016 —, superando as 200 na Argentina, ressalta Bruna Guimarães, gerente de Franquia da empresa. Este ano, espera-se alta de 37% no faturamento, que em 2015 foi de R$ 55 milhões.
A Freddo, fundada em 1969, quer abrir de cinco a dez unidades no Brasil neste ano. Em 2015, foram cinco.
— Queremos chegar entre 40 e 45 lojas neste ano. É uma previsão. Vai depender da economia brasileira. Esperamos uma recuperação no segundo semestre — conta Juliano Russo, responsável pela operação no Brasil.
Já a Arcor, do chocolate Tortuguita e das balas Butter Toffes, prepara mais de 40 lançamentos neste ano.
José Augusto de Castro, da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB),prevê aumento de importações. Ele cita o avanço de malte de cerveja, chocolates, azeitonas e azeites:
— O mundo está olhando para a Argentina.