A guerra dos tronos toma a Arábia Saudita
Perto da meia-noite do sábado 4, dezenas de executivos e consultores foram despejados sem aviso de seus quartos no Ritz-Carlton de Riyadh. As vagas eram necessárias para abrigar 11 príncipes e pelo menos 38 ministros, políticos e grandes empresários, detidos por ordem do príncipe herdeiro, Muhammad bin Salman. Com suas portas fechadas e guardadas, o hotel tornou-se, até segunda ordem, uma penitenciária de luxo.
Entre os presos estão o príncipe Mitaib, até a véspera comandante da Guarda Nacional, e seu irmão Turki, ex-governador de Riyadh, ambos filhos do rei Abdullah, morto em 2015, quatro ministros, o príncipe Al-Waleed bin Talal, homem mais rico do mundo árabe, Bakr bin Laden, presidente da maior empreiteira saudita (e meio-irmão de Osama), os presidentes das três tevês estatais e também o da principal rede privada, a MBC. Estima-se que até 800 bilhões de dólares podem ser confiscados desses detidos por alegação de corrupção.
Não houve sequer uma simulação de processo legal e não há como levar a sério o tuíte de apoio do presidente Donald Trump. “Confio muito no Rei Salman e no Príncipe Herdeiro da Arábia Saudita, eles sabem exatamente o que fazem. Alguns dos que eles tratam com dureza têm ‘ordenhado’ seu país por anos!” Ordenhar a vaca leiteira do petróleo tem sido a vida de toda a elite saudita, sem exceções, há gerações. Trata-se de um expurgo e um golpe palaciano, provavelmente combinado com o primeiro-genro, Jared Kushner, em sua viagem sem aviso à Arábia Saudita em 30 de outubro.
Tradicionalmente, o país era governado pelo consenso da família real e o equilíbrio entre seus principais ramos, cada um deles com seus próprios associados e aliados empresariais, militares e religiosos, era arbitrado pelo monarca.
O herdeiro rompeu a tradição para impor uma hegemonia absoluta. Não faltará na mídia ocidental, também amamentada pela vaca saudita, quem louve as reformas supostamente liberais e progressistas do jovem déspota, mas o gesto é parte da ascensão das direitas nacionalistas no século XXI.
Como outros grandes exportadores de petróleo, a Arábia Saudita também sofre com a queda de preços orquestrada em parte por ela mesma para expulsar concorrentes do mercado. Não há recursos para garantir a todos os setores da elite as benesses com as quais se acostumaram no auge da bonança.
Ao mesmo tempo, fracassou a política externa das últimas décadas, que não isolou o Irã nem derrubou Bashar al-Assad ao financiar fundamentalistas sunitas na Síria e no Iraque (inclusive a Al-Qaeda e o Estado Islâmico) e lobbies anti Irã em Washington
É necessário mudar de rumo, fazer escolhas, modernizar o Estado e cortar privilégios, mas o país entra em um dos mais perigosos entre os caminhos possíveis.
Desde 2015, quando Salman se tornou rei e o filho Muhammad ministro da Defesa, o país enredou-se em aterradoras violações de direitos humanos na interminável guerra civil no Iêmen, na repressão violenta à minoria xiita no seu próprio reino, em um impasse sem solução com o Catar que enfraqueceu a liderança saudita no Golfo Pérsico e na tentativa fracassada de independência do Curdistão iraquiano
Essas aventuras, com as quais se queria reafirmar o poder saudita e o prestígio do rei e de seu herdeiro, estão custando caro em termos financeiros e simbólicos. O golpe é uma fuga para a frente, com a qual se pretende pôr irreversivelmente o reino no rumo pretendido antes que os fiascos unam a elite saudita contra a presunçosa dupla.
Ao atacar parte da elite e patrocinar reformas superficiais, como a permissão a mulheres para dirigir, pai e filho ganharam o aplauso de sauditas mais jovens, ansiosos por medidas de modernização. Esperam atrair investimentos internacionais para projetos como a cidade automatizada de Neom, planejada junto à Jordânia e o Sinai a um custo de 500 bilhões de dólares, com leis próprias e mais robôs do que humanos.
Pelo verniz de modernidade, deram cidadania à robô Sophia, construída por uma empresa de Hong Kong, para irritação das mulheres sauditas com a robô livre para não usar véu e se mover em público entre homens.
Entretanto, as próprias dúvidas sobre a estabilidade da monarquia trazidas pelo golpe fazem os investidores pensarem duas vezes antes de apostar nesses projetos mirabolantes. E como se não bastasse, o país em convulsão lança-se em novas peripécias.
Em visita a Riyadh no próprio sábado do expurgo, o primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, sunita aliado dos sauditas cujo pai foi assassinado (supostamente pelo Hezbollah) em 2005, anunciou sua renúncia e acusou o Irã e o Hezbollah de quererem assassiná-lo, enquanto um míssil supostamente iraniano e lançado pelos rebeldes houthis do Iêmen era interceptado pelo sistema antimísseis perto do aeroporto da capital, servindo de pretexto para o rei bloquear os portos iemenitas e agravar ainda mais a pavorosa crise humanitária de um país devastado pela fome e pelo cólera.
Possivelmente em coordenação com Benjamin Netanyahu através de Jared Kushner, Salman e filho parecem querer provocar o Hezbollah a um golpe no Líbano que sirva de pretexto a um ataque de Israel capaz de varrer a influência iraniana e síria do país.
Se possível, também açular o Irã a uma atitude suficientemente agressiva para fortalecer Trump ante os europeus em seu esforço para restaurar as sanções a Teerã e, quem sabe, mover outra guerra.
Tudo isso se encaixa no modus operandi do inquieto príncipe saudita e pode comprometer não só o país, como o Oriente Médio e o mundo em uma crise mais grave do que aquelas da Síria e do Iêmen.
Hezbollah afirma que premiê libanês está ‘detido’ na Arábia Saudita
Em discurso na TV, Hassan Nasrallah disse que Arábia forçou renúncia e não permite que Saad Hariri retorne ao país. Líder do Hezbollah afirmou ainda que árabes estão incentivando Israel a atacar o Líbano.
Mulher exibe foto do líder do Hezbolahh, Hassan Nasrallah, durante seu pronunciamento na TV libanesa, em Beirute, na sexta-feira (10) (Foto: AP Photo/Bilal Hussein)
O chefe do movimento xiita Hezbollah acusou nesta sexta-feira (10) a Arábia Saudita de ter “detido” o primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, que na última semana
chefe do movimento xiita Hezbollah acusou nesta sexta-feira (10) a Arábia Saudita de ter “detido” o primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, que na última semana anunciou inesperadamente na capital saudita sua renúncia ao cargo
“O chefe de governo libanês está detido na Arábia Saudita, no momento não é permitido que ele retorne ao Líbano”, indicou Hassan Nasrallah em um discurso exibido na televisão, segundo a AFP.
Em plena tensão entre a Arábia Saudita e o Irã, Nasrallah afirmou que Riad está incentivando Israel a atacar o Líbano.
“O mais perigoso é que se está incentivando Israel a atacar o Líbano”, ressaltou.
“Falo a respeito de informações que confirmam que a Arábia Saudita pediu a Israel para atacar o Líbano (…). Mas atualmente estamos mais fortes”, disse Nasrallah, advertindo para “um mau cálculo [estratégico]”.
A crise atemoriza a população libanesa, que sofreu com uma guerra civil entre 1975 e 1990 e viveu um conflito com Israel em 2006.
O primeiro-ministro libanês Saad al-Hariri durante coletiva de imprensa, em outubro (Foto: Mohamed Azakir/Reuters)
O premiê libanês é um muçulmano sunita, cujo partido é rival do Hezbollah na cena política libanesa, apesar de ter ministros do movimento xiita em seu governo.
Arábia x Irã
O caso está sendo percebido como uma nova disputa entre a Arábia Saudita, sunita, e o Irã, xiita, aliado do Hezbollah.
As duas potências do Oriente Médio já se enfrentam em várias questões regionais, especialmente nas guerras no Iêmen e na Síria.
O presidente libanês, Michel Aoun, ainda não aceitou a renúncia de Hariri e espera se encontrar com o premiê para analisar a questão.
Aoun manifestou sua “preocupação” com o destino de Hariri, e informou ao encarregado de negócios saudita em Beirute que a forma como ocorreu sua renúncia é “inaceitável”.
O presidente libanês tem multiplicado seus contatos diplomáticos para solucionar a crise.
Segundo Nasrallah, o premier libanês está em “prisão domiciliar” na Arábia Saudita e foi “obrigado” a apresentar sua renúncia por Riad, “lendo um texto escrito por eles”.
Hariri comunicou sua renúncia em um discurso divulgado pelo canal de notícias Al Arabiya, no qual denunciou o “controle” exercido pelo Irã e seu aliado Hezbollah no Líbano.
Segundo seus detratores, o Hezbollah – único movimento a não depor as armas ao final da guerra civil libanesa – tem forte influência nas questões do Estado libanês e seu arsenal é um dos principais focos de discórdia no Líbano.
Preocupação dos EUA e da ONU
O secretário de Estado americano, Rex Tillerson, pediu nesta sexta-feira que não se use o Líbano para um conflito de interesses, após a crise provocada pela renúncia de Hariri.
Tillerson afirmou não ter “qualquer indício” de que Hariri esteja sendo mantido na Arábia Saudita contra sua vontade, mas manifestou sua preocupação com os efeitos que sua renúncia possa ter na estabilidade do governo libanês, composto de cristãos e muçulmanos sunitas e xiitas.
Em uma mensagem que parece dirigida principalmente ao Irã e ao Hezbollah, o chefe da diplomacia americana advertiu que “não há um lugar legítimo no Líbano para qualquer força, milícia, ou elementos armados estrangeiros, que não sejam os das forças de segurança legítimas do Estado libanês, que devem ser reconhecidas como a única autoridade na segurança do Líbano”.
O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, alertou hoje que um novo conflito no Líbano teria “consequências devastadoras” e disse estar envolvido em “intensos” contatos com todas as partes para buscar uma distensão da situação.
Semanas decisivas
Se a crise política do Líbano se tornar violenta, o conflito resultante pode atrair os Estados Unidos e Israel para uma disputa mais profunda em todo o Oriente Médio. Autoridades israelenses, sauditas e americanas consideram o Irã como o principal “patrocinador estatal do terrorismo”.
A Arábia Saudita classifica o Irã como a principal fonte de conflito no Oriente Médio, especialmente porque o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tem se posicionado cada vez mais contra Teerã.
Para Israel, o Hezbollah representa uma ameaça à segurança em sua fronteira. Os Estados Unidos o classificam como um “grupo terrorista”. SYezid Sayigh, especialista do think tank Carnegie Middle East Center, ouvido pela Deutsche Welle, acredita que as próximas semanas e meses serão decisivos, especialmente se os EUA recomendarem novas sanções contra o Irã.
História problemática
Politicamente, o Líbano está dividido em linhas sectárias, com poder distribuído entre os principais grupos religiosos do país.
Sob um acordo de 1943, após a independência do Líbano da França, a presidência deveria ser ocupada por um cristão maronita, o primeiro-ministro deveria ser muçulmano sunita, e o presidente do Parlamento, um muçulmano xiita. Desde um acordo para acabar com o conflito civil de 15 anos, em 1990, o sistema confessional continuou sendo empregado com relativo sucesso.
O pai do ex-primeiro-ministro, Rafik Hariri, foi assassinado em 2005. Após uma longa investigação, um tribunal apoiado pela ONU emitiu mandados de prisão para quatro membros do Hezbollah, acusando os extremistas pelo assassinato. O grupo nega qualquer envolvimento.
Fonte: G1
Campanha anticorrupção assinala “nascimento de uma nova Arábia Saudita”
Onda de detenções vem reforçar o poder do herdeiro do trono saudita, que avisara que ninguém, “seja príncipe seja ministro”, está acima das leis. Analista considera que o reino está a viver uma “transição muito importante”.
O príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, viu reforçados os vastos poderes que já detém no reino na sequência da detenção na noite de sábado para domingo de onze príncipes da família real, entre os quais o poderoso ministro da Guarda Nacional, Miteb bin Abdullah, e o empresário e multimilionário Alwaleed bin Talal, quatro ministros em funções e vários ex-ministros, todos acusados de corrupção. Uma ação sem precedentes na história desta monarquia da região do Golfo.
Numa recente entrevista, Mohammed bin Salman, conhecido pelas iniciais MbS, notara que “ninguém está acima da lei, seja um príncipe seja um ministro”. Para um especialista em política da região, Fawaz Gerges, “está a assistir-se ao nascimento de uma nova Arábia Saudita”. Falando à CNN, Gerges explicou que “tudo o que tem sucedido neste último ano” no reino evidencia que o príncipe herdeiro “está a pôr em prática as suas ideias, a neutralizar a oposição mas também quer impedir, como disse há dias, a desagregação da economia e a saída de recursos para outros países”. Para Gerges, “a Arábia Saudita está a viver uma importante, muito importante transição”.
As prisões sucederam um pouco por toda a Arábia Saudita, com os detidos a serem levados para o hotel Ritz Carlton na capital, Riade. A Reuters escrevia ontem que um dos seus jornalistas foi impedido de se aproximar do local, onde era visível um forte dispositivo de segurança assim como ambulâncias.
A justificação para as detenções foi a “proteção dos dinheiros públicos e o combate à corrupção”, disse o ministro da Cultura e Informação, Awad bin Saleh, à agência oficial saudita. Mas, para os analistas, a razão central para as detenções assenta no reforço dos poderes de MbS, em especial sobre as forças de segurança, e na neutralização de críticos às suas políticas. Entre os afastados de funções estão pessoas que se opõem à política externa seguida por Riade, nomeadamente na questão do boicote ao Qatar, ou a decisões no plano interno, como o fim de uma série de subsídios a pessoas e a empresas ou a privatização de empresas públicas, como se espera que venha a suceder, ainda que de forma parcial, com a petrolífera Aramco.
Noutras áreas, o anúncio em setembro do fim da proibição de as mulheres conduzirem e alguns aspetos da Visão 2030, programa de reforma e modernização da sociedade saudita que teve na sua génese MbS, estariam também a ser contestados por setores mais conservadores. Entre os aspetos da Visão 2030 que suscitam anticorpos nos meios conservadores está o incentivo à entrada de turistas, a promoção de espetáculos públicos “diversificados” e uma liberalização controlada da vida social.
Ao afastar importantes figuras na complexa hierarquia e teia de relações na esfera da família real, MbS, de 32 anos, consolida a posição como príncipe herdeiro e, atendendo à idade avançada do pai, 81 anos, está a reunir condições para dirigir o reino por várias décadas. Muitos observadores da política saudita consideravam que, ainda antes da presente onda de prisões, MbS era já o homem mais poderoso no reino e seu governante de facto.
As detenções foram conhecidas pouco depois do anúncio da criação pelo rei Salman, também ontem, de uma comissão de luta contra a corrupção, presidida precisamente pelo filho, MbS. A principal surpresa foi a detenção de Alwaleed bin Talal, de 62 anos, neto do fundador da dinastia Saud, sobrinho do rei Salman e um dos 50 homens mais ricos do mundo, segundo a lista da Forbes para 2017, com uma fortuna estimada em 18 mil milhões de dólares. Bin Talal é conhecido pelas suas extravagâncias, que passam, entre outros aspetos, por ter oferecido automóveis de luxo Bentley a pilotos de combate sauditas que participaram na guerra no Iémen, mas principalmente como investidor, sendo o maior acionista individual do Citigroup e com presença noutras áreas como o imobiliário.
Quanto a Miteb bin Abdullah, este é filho do anterior rei, Abdullah, e o último elemento desta linhagem da família real a ocupar uma posição de poder real com o comando da Guarda Nacional. Corpo que pode ser considerado a guarda pretoriana do regime saudita, detendo o estatuto de ramo das Forças Armadas e estando sempre sob comando de um elemento preponderante da família real, que responde diretamente perante o monarca.
A Guarda Nacional tem ainda a particularidade de ser formada apenas por elementos das tribos leais à família Saud. Com mais de 220 mil efetivos, tem como missões centrais a proteção da família real e a segurança das cidades santas de Meca e Medina, entre outras tarefas.
As detenções agora efetuadas sucedem dois meses depois de o rei Salman ter afastado o sobrinho Mohammed bin Nayef da linha de sucessão, substituindo-o por MbS. Entre os presos estão ainda o comandante da Marinha de Guerra, o antigo diretor da transportadora aérea nacional, o irmão mais velho de Osama bin Laden, Bakr bin Laden, que dirige a principal empresa de construção civil no reino, vários outros empresários, o ministro da Economia, Adel Fakeih, e o proprietário das televisões MBC e Al-Arabiya.
Estas detenções seguem-se a outras em setembro, em que foram presas 30 pessoas, quer clérigos conservadores quer opositores aos Saud.
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