Aquarius: a resistência é um lugar solitário
Eu não fazia a menor ideia do que se tratava Aquarius, além de um tal boicote ao filme, que só serviu para me deixar curiosa. Fui ao cinema sem esperar nada, mesmo sendo difícil com tanta polêmica ao redor, mas assisti e achei massa. Especialmente por ser um filme em que os personagens falam “massa”.
É bonito ver na tela histórias nossas, que sejam brasileiras dos diálogos à trilha sonora, dos conflitos dos personagens às controvérsias de cada um. Como em O Som ao Redor, Kleber Mendonça Filho volta a colocar foco nas relações que se criam entre as pessoas a partir dos conceitos de vizinhança, sociedade e família.
São histórias cujo brilho não está em enredos mirabolantes, mas em recortes que ele faz (às vezes num zoom literal da câmera) para nos aproximar dos personagens. Boas histórias são sempre sobre pessoas, afinal.
Aquarius é a história de uma mulher que se recusa, ponto. Assim, intransitivamente.
Clara, a protagonista, mora há décadas em um edifício antigo de frente para a praia de Boa Viagem, no Recife. O prédio, que dá nome ao filme, está em processo de ser adquirido, apartamento por apartamento, por uma construtora que pretende derrubá-lo para construir um condomínio de luxo, mais moderno. No entanto, a empresa, representada pelo proprietário e seu sobrinho, que foi estudar “business” fora do Brasil, encontra na figura de Clara um obstáculo: a mulher se recusa a vender o apartamento.
Ela se recusa a ceder às propostas, intimidações e ameaças. Ela se recusa, mesmo que para isso acabe sendo taxada de louca, de velha chata, de barraqueira.
Clara é uma personagem poderosa, densa, não só pela interpretação de Sonia Braga, mas pela quantidade de informação sobre ela que o filme consegue colocar em cada segundo, em cada silêncio, em cada diálogo e em cada gesto.
Os outros personagens – seus filhos, suas amigas, a doméstica que trabalha pra ela, os empresários da construtora, o salva-vidas da praia, seu sobrinho e a namorada – todos eles também ganham profundidade, entrelaçando-se numa teia em que nas fragilidades, nas conexões e nos conflitos servem de espelho para a vida real.
Também vi muito da vida real no tema. Porque a história da moradora que vai sendo empurrada para fora de seu apartamento, seja por propostas, ameaças ou situações embaraçosas e incômodas, conta muito sobre as grandes e micro expulsões que sofremos no dia a dia.
Quantas vezes, por não conseguirem nos expulsar de um espaço, já não colocaram várias dificuldades no caminho para que desistíssemos por nós mesmas? Quantas vezes nos vimos na situação de ter que abandonar um espaço, um projeto, uma posição, pela insistência do outro lado em nos ver fora? Quantas vezes já nos pintaram de loucas, exageradas, ou já fomos excluídas por dizermos “não”? Quantas vezes nos sentimos sozinhas por resistir?
Em uma entrevista coletiva sobre o filme, a atriz Maeve Jinkings, que interpreta a filha que entra em conflito com Clara, diz que é mais fácil ceder à pressão e ir no fluxo, seguir o pensamento predominante, do que resistir. Porque a resistência exige coragem, exposição. A resistência é uma posição solitária.
Aquarius não está ali para exaltar a história de uma única mulher, de uma heroína, como no cinema mainstream que nos acostumamos a consumir; o filme acaba servindo para apontar para o cotidiano, onde há pessoas resistindo diariamente, das mais diversas formas, muitas vezes sem serem notadas. Há várias Claras ao nosso redor. Nós as conhecemos, vivemos e trabalhamos com elas. Às vezes, somos nós.
Os padrões da sociedade, o mercado, os interesses de quem tem mais poder esperam que as pessoas se conformem, sigam o que foi estabelecido, obedeçam. Nesse contexto, dizer “não” se transforma num ato político. E as Claras da vida que real que resistem podem até estar tão sozinhas quanto num edifício completamente desocupado, mas estão exercendo um poder que faz com que sejam, no fundo, temidas por aqueles que as querem expulsar a todo custo.
O filme serve de espelho, mas também de companhia. Porque a resistência pode ser difícil, mas perceber e lembrar que existem outras pessoas resistindo faz com que nos sintamos menos solitárias. E assim continuar resistindo; sozinhas, mas todas juntas.
Fonte: Carta Capital
Moradora de São João da Barra enfrenta o Porto do Açu para ficar em seu sítio
Como no filme ‘Aquarius’, Noêmia Magalhães conta ter sofrido ameaças por não ter deixado a casa em que vive
LUTA SE TORNOU COLETIVA
A história lembra a de Clara, interpretada por Sônia Braga no filme “Aquarius”. No longa de Kleber Mendonça Filho, a personagem desafia as propostas de uma construtora que pretende subir, no lugar do prédio em que ela vive, um novo edifício, na Praia de Boa Viagem, no Recife. Na vida real, Noêmia enfrenta há seis anos os planos de um megaempreendimento que, no início, pertenceu a Eike Batista e, após a derrocada do empresário, passou às mãos da Prumo Logística, controlada por um fundo americano. Qualquer semelhança entre os enredos é mera coincidência. Noêmia ainda nem assistiu ao filme. Mas já sabe que, dependendo dela, as duas histórias terão um mesmo fim, de resistência.
— Não vou desistir. Nunca corri tanto risco de perder o sítio quanto agora. Há um ano, um juiz deu a posse do imóvel ao empreendimento. Uma semana depois, voltou atrás. Mandou que o sítio fosse reavaliado, o que aconteceu em abril. Eles acham que, depois de tanta luta, vou embora facilmente? Vou desobedecer, vão me algemar, podem me prender — diz Noêmia, apresentando razões para a persistência: — Na negociação, existem duas coisas distintas: preço e valor. Quem não sabe a diferença não entende o amor. Quanto vale seu projeto de vida? Isso se negocia? Você dá preço a seu sonho? Valores não se vendem, nem se compram.
‘Na negociação, existem duas coisas distintas: preço e valor. Quem não sabe a diferença não entende o amor. Quanto vale seu projeto de vida? Isso se negocia? Você dá preço a seu sonho? Valores não se vendem, nem se compram’
UM PAU-BRASIL PARA CADA NETO
Como no filme, a Clara de São João da Barra também é aposentada. Só que foi professora, em vez de jornalista. Com o marido, o bancário Valmir Batista, ela sempre projetou ter um sítio. Faz 20 anos que concretizou o desejo. Passou a comer o que cultivava na horta, sem agrotóxicos. Plantou um pau-brasil para cada um dos quatro netos, e outras árvores batizadas com os nomes de amigos. No início, quando acordava, abria a janela e ouvia uma orquestra de pássaros, que acreditava ser tocada especialmente para ela. Até que, dez anos atrás, foi lançada a pedra fundamental do porto. No começo, até parecia um alento, com a expectativa de que movimentasse a região e ajudasse nas vendas dos pequenos produtores locais.
Em 2010, contudo, a Companhia de Desenvolvimento Industrial do Estado do Rio (Codin, subordinada à Secretaria estadual de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Serviços) iniciou as desapropriações para entregar as terras ao empreendimento, com a proposta de se criar ali um polo metalmecânico na retaguarda do porto, além de uma área para armazenamento de produtos. Sonho e pesadelo passaram a ter linha tênue.
SÍTIO DO BIRICA: OÁSIS NO MEIO DE UM DESERTO
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Vista aérea do Sítio do Birica: propriedade é hoje um oásis verde em meio a terras secas, desapropriadas pelo estado para abrir espaço ao Porto do Açu e a um distrito industrial contíguoFoto: Daniel Marenco / Agência O Globo
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Dona do sítio, Noêmia Magalhães espalhou placas para dar recados a quem tenta tirá-la de sua casa, no meio da área do distrito industrialFoto: Daniel Marenco / Agência O Globo
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Área tem hortas e já é utilizada pela professora aposentada para projetos sociais e de ecologia Foto: Daniel Marenco / Agência O Globo
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Casa vazia nas bordas do distrito industrial do Porto do Açu: várias propriedades foram esvaziadas para dar lugar ao empreendimentoFoto: Daniel Marenco / Agência O Globo
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Outra casa abandonada: ao todo, eram mais de 400 áreas rurais na região do distrito industrialFoto: Daniel Marenco / Agência O Globo
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Escombros em frente ao Sítio do Birica: hoje, o vizinho mais próximo da propriedade fica a cinco quilômetros de distânciaFoto: Daniel Marenco / Agência O Globo
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Noêmia Magalhaes, de 70 anos, já luta ha seis anos para permanecer no sítioFoto: Daniel Marenco / Agência O Globo
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Apesar do jeito manso do interior, ela já enfrentou o empresário Eike Batista em sua tentativa de permanecer em casaFoto: Daniel Marenco / Agência O Globo
— A gente valia muito pouco. Aqueles agricultores que tinham suas histórias ali, que enterraram o umbigo de seus filhos na terra, eram tratados com descaso. Não estavam preocupados com eles. Queriam as terras — afirma Noêmia, que resolveu fazer da luta pessoal uma briga coletiva, com os produtores da região.
Os vizinhos começaram a ir embora. Alguns, foram retirados à força e suas casas transformadas em ruínas, ainda hoje espalhadas pela região do distrito industrial — que se estende por 60 quilômetros quadrados, onde havia 409 áreas rurais. Nesse cenário, até dois anos atrás, em vez dos pássaros Noêmia passou a avistar placas da LLX, subsidiária de logística do grupo EBX, com o aviso de que aquela era uma área particular e, por segurança, não deveria ser ultrapassada. Agora, com a gerência da Prumo, volta e meia topa com seguranças a cavalo rondando o sítio.
— Como gosto de fazer de um limão uma limonada, passei a achar que era segurança para mim. Até amizade fiz com os rapazes. Porque posso dizer que estamos ilhados. Se acontece alguma coisa, para quem apelar?
Os perigos, aliás, reais ou talvez fabricados por quem quer vê-la longe, diz ela, se tornaram constantes. Uma noite, o marido e ela passaram duas horas jogando água na estrada que passa em frente ao sítio, para tentar evitar que um incêndio no terreno da frente os atingisse. Outra vez, acordaram com tiros na porta de casa. Em duas ocasiões, Noêmia se viu com um revólver na cabeça. Teve um carro roubado e, em inúmeros telefonemas, a voz do outro lado dizia apenas que sabia onde ela estava.
— As pessoas, até da minha família, têm medo de andar comigo. Acham que qualquer dia posso levar um tiro — diz ela.
A tranquilidade foi embora, e muito do verde no entorno do sítio também. Hoje, a propriedade parece um oásis em meio a terras secas. A cerca de dois quilômetros da casa de Noêmia, a areia retirada do mar para a construção de uma das estruturas do porto formou uma espécie de deserto de dunas. E faz anos que moradores e ambientalistas questionam se o empreendimento salinizou ou não o solo e a água locais.
Outra característica: se o porto funciona desde 2014 com operações envolvendo minério de ferro, na maior parte do distrito industrial o que se vê são quilômetros de arame farpado cercando terrenos vazios, à espera do sucesso do empreendimento. Na outra ponta, há agricultores, obrigados a deixar as propriedades, que ainda não receberam nada, com indenizações presas na Justiça. Algumas pessoas enlouqueceram, caíram em depressão e, como diz Noêmia, até “morreram de paixão” pela terra perdida.
RISCO DE DESAPROPRIAÇÃO NA INFÂNCIA
Apesar disso, a Codin afirma que “não há impasse” algum referente às indenizações, e que todas as obrigações da companhia “estão sendo rigorosamente cumpridas”. Segundo o órgão, cada área desapropriada teve laudos e valores atribuídos específicos, não divulgados. O total apurado, diz a Codin, foi depositado em juízo. Mas a companhia reconhece que aproximadamente 70% dos proprietários ainda não receberam suas indenizações, enquanto que a Prumo afirma que, embora a responsabilidade seja da Codin, apoia o estado na realocação de famílias.
No caso de Noêmia e de parte dos moradores de localidades como a Água Preta, ainda não há definições. Já são anos convivendo com a incerteza de quando tentarão, mais uma vez, tirá-los de casa. Uma situação que abalou a saúde de Noêmia, às voltas com a pressão alta. Ficou debilitada. O que a mantém forte, então, na resistência? Ela diz que pode ser uma lembrança de infância e adolescência, quando seu pai, em Itaúna, Minas Gerais, também lutou contra a desapropriação. Um dia, ela perguntou por que ele não entregava os pontos:
— Ele me deu uma resposta que nunca mais esqueci: “O homem que não cuida e não defende sua terra, não defende nem a sua família”.
Fonte: O Globo
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