‘Milhões vão viver de forma sub-humana’, diz Mahmoud Elkhafif
Chefe de Assistência ao Povo Palestino da ONU afirma que ‘situação em Gaza não é sustentável’

Por que a Unctad chegou à conclusão de que Gaza vai ficar inabitável até 2020?
Desde 2007, Gaza está sob bloqueio israelense, num cerco econômico, onde nada é permitido entrar, a não ser itens humanitários essenciais. Além disso, nos últimos seis anos, sofreu três operações militares feitas por Israel. Nosso relatório já tinha chegado a essa conclusão (de que Gaza ficaria inabitável até 2020) em 2012. Se considerarmos o último conflito, e que nenhuma providência foi tomada, a situação é muito pior do que nossas previsões de 2012
Quais foram os principais danos sofrido por Gaza em 2014?
Qual a recomendação da ONU?
Basicamente, três coisas: suspender o bloqueio feito desde 2007; permitir a entrada de material para reconstrução; não repetir as operações militares. Também é urgente reativar o Acordo de Movimentação e Acesso, assinado em 2005 entre Israel e a Autoridade Palestina, baseado essencialmente em três pontos: conectar Gaza à Cisjordânia; construir e operar o porto de Gaza; começar as negociações para o aeroporto de Gaza. O Egito poderia ser incluído, de modo que o pacto fosse selado entre Gaza e os outros dois lados.
E se isso não ocorrer?
A situação em Gaza é explosiva e não é benéfica a ninguém. A comunidade internacional deve assumir sua responsabilidade. Uma solução permanente para o conflito entre israelenses e palestinos deve ser encontrada. Manter 1,8 milhão de pessoas sob esse bloqueio não é produtivo e, em 2020, vai ficar pior.
Milhares de casas destruídas pela guerra continuam inabitáveis em Gaza
Um ano após conflito com Israel, território palestino ainda está sendo reconstruído
Fouad Harara, de 56 anos, chega em sua casa na Rua Montar antes das 6h para comparar o trabalho que foi feito no dia anterior ao desenho de seu maço espesso de plantas de engenharia. Ele volta no meio do dia com frango e arroz para os dez homens que, nas últimas quatro semanas, estão completando o chão de blocos de concreto onde Harara espera reabrir sua loja de serviços elétricos e levantar colunas para o segundo dos sete andares que estão nas plantas.
— Exatamente do jeito que era — conta Harara sobre a construção que vai repor a casa que ergueu em 1993, uma das centenas derrubadas pelos ataques israelenses em Shejaiya, bairro de Gaza que fica na fronteira, durante a guerra do verão passado. — Eu vivia confortavelmente aqui. Perdemos tudo, mas ainda está na minha memória.
IMPASSE PARA RECONSTRUÇÃO
Os envolvidos no processo e grupos de defesa atribuem a demora a uma briga política interna na Palestina, ao envolvimento de Israel na aprovação dos projetos e dos participantes e à falta de fundos. No fim do ano passado, doadores internacionais mandaram cerca de US$349 milhões, dos US$2,5 bilhões pedidos para a reconstrução de Gaza, e grande parte desse valor foi gasto na remoção de escombros, em alojamento temporário para 100 mil pessoas ou em reparos menores.
Oficiais de Israel, da Palestina e das Nações Unidas sabem que o mercado negro de Gaza sofreu uma inundação de cimento, com parte dele indo parar sem dúvida nas redes de túneis subterrâneos — exatamente o que o sistema de monitoramento está tentando evitar.
— Sabemos e acreditamos que parte disso vai para os lugares errados — afirma o major
Adam Avidan, a principal pessoa de Israel no Mecanismo. A certa altura, 18 dos 30 beneficiários compraram toda a sua necessidade de cimento e “no mesmo dia o venderam no mercado negro. Eles não construíram suas casas”.
Cerca de 37 mil toneladas de cimento estão guardadas nos armazéns de Gaza, perto ou já fora de sua data de validade para os projetos.
Mofeed M. Al Hassaina, ministro da Habitação e de Serviços Públicos que fica em Gaza, estava em Shejaiya em 23 de julho quando Harara ficou entre os primeiros donos a começar a reconstruir, cercado pelos cliques das câmeras. Mas Hassaina afirma ter medo de voltar ao bairro e recusou um convite para a inauguração de uma escola depois de três dias de protestos de moradores na porta de seu escritório.
— Não posso ir até lá porque eles estão bravos. Talvez estejam nos xingando e gritando comigo porque andam frustrados com suas vidas.
Grupos da sociedade civil da Palestina fizeram uma petição em agosto pedindo o fim do Mecanismo de Reconstrução, dizendo que o acesso de Israel à base de dados de casas destruídas e seu papel na revisão das inscrições só arraigou seu controle sobre Gaza, uma posição que encontra eco em um relatório publicado recentemente pelo Gisha, um grupo israelense que promove liberdade de movimentos para os palestinos.
Mas Hassaina, outros líderes palestinos e representantes das Nações Unidas disseram que Israel fez sua parte em um período de tempo razoável e que permitiu a entrada de cimento em Gaza. O problema principal, segundo eles, são os cofres vazios.
— Agora temos dois mil nomes que foram aprovados por Israel, eles mandam material, mas onde está o dinheiro? —pergunta Hassaina.
O Catar forneceu US$6 milhões de um pedido de US$50 milhões para reconstruir mil casas, explica ele, e o “Kuwait prometeu US$75 milhões, mas não recebemos nada ainda”.
FALTA DE PLANO
Outros reclamam que a reconstrução está sendo feita de maneira fragmentada, sem um plano de desenvolvimento geral incluindo infraestrutura para vizinhanças como Shejaiya ou mudanças estruturais na economia para resolver a questão do desemprego em Gaza, que está acima dos 40%. O mecanismo esperava ir além da reconstrução das casas destruídas no ano passado para resolver a falta de 85 mil moradias que Gaza tinha antes da guerra.
— Voltar à situação de junho de 2014 não é ok. Longe disso, seria condenar Gaza a mais miséria — afirma Robert Piper, vice-coordenador especial para o processo de paz. — O desastre em potencial é que não nos movemos rápido o suficiente no software, planejando e coordenando.
Piper e Bashir Rayyes, coordenador da Autoridade Palestina para a reconstrução de Gaza, diz que o foco nas moradias destruídas foi muito mesquinho. Cerca de 78 mil famílias de Gaza receberam dinheiro para reformar casas que tiveram prejuízos pequenos ou moderados, mas muitos deles revenderam o cimento por três vezes mais do que os 250 siclos, cerca de US$135, por tonelada recomendado pelo Mecanismo.
Hassaina, o ministro de Serviços Públicos, diz que 455 toneladas de escombros foram removidas; mas ainda há 1,5 milhões de toneladas no local. De acordo com o site do Mecanismo, 115 projetos maiores, como escolas, hospitais e estradas estão sendo construídos, 15 foram terminados e 237 estão na fila de aprovação. Rayyes afirma que 95% da rede elétrica de Gaza e do suprimento de água foram restaurados.
Harara tem uma fotografia de sua casa antiga pregada na tenda que montou depois que a guerra acabou, onde passa todos os dias. A imagem mostra uma castanheira florescente, que ele afirma ter sido derrubada pelas bombas de Israel.
A alguns metros dali, galhos verdes saem do chão, uma parte da árvore aparentemente está revivendo.
— Somos a mesma coisa: nossas casas e nós mesmos — afirma o irmão de Harara, Abed, de 53 anos. — Não morremos. Nossas raízes são como as dessa árvore.
Fonte: O Globo
Gaza: dez anos sem Israel e ainda sob cerco
Após retirada de colonos, território palestino afunda na pobreza sob os bloqueios militar e comercial

O palestino Yousef Bashir tinha 15 anos quando, em 2004, no quintal de casa, na Faixa de Gaza, levou um tiro nas costas, que seccionou nervos perto da espinha. Caiu no chão: paralisado. Foi levado às pressas a um hospital local e, depois, a outro em Tel Aviv. Em pouquíssimo tempo conheceu o poder militar e os cuidados de uma medicina de alto nível, ambos israelenses. Um ano depois, após meses reaprendendo a andar, viu soldados de Israel evacuarem o assentamento judeu de Kfar Darom, perto de casa. Era 2005, e Tel Aviv ordenava a retirada de todos os colonos do território palestino. Agora, uma década depois, Bashir afirma que o tiro mudou sua vida. Mas, na ótica do palestino, hoje mestrando em “Paz, conflito e coexistência” na Universidade Brandeis, Massachusetts, o cenário ainda é o mesmo em Gaza.
— Apesar de sair, Israel ainda controla o território por mar, ar e terra. E impôs o bloqueio. Nada foi feito para aliviar as tensões e buscar a verdadeira paz — afirma ele. — Os únicos judeus que conhecia eram militares. Mas vi israelenses salvarem minha vida. Meu pai disse para usar isso como oportunidade de fazer a diferença.
Bashir se diz ativista pela paz, e busca mudança para a terra natal, mas reconhece que, até agora, “Israel deixou Gaza para aumentar a ocupação do lado de fora”. E os 1,8 milhão de palestinos na região vivem sob o que a ONU classifica como “condições socioeconômicas terríveis”.
— Israel é responsável pelo bloqueio e, claro, pela pobreza — afirma o especialista em Oriente Médio Sébastien Boussois, da Universidade Livre de Bruxelas, ressaltando a cooperação política do Egito no cerco.
‘Hamas é inimigo confortável’
De acordo com o último relatório sobre assistência aos palestinos, da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), o desemprego em Gaza chegou a 44% em 2014, o maior já registrado. A insegurança alimentar afeta 72% das famílias. “O bem-estar econômico é o pior em duas décadas”, afirma o documento. Após o último conflito com Israel, entre julho e agosto do ano passado, o número de refugiados dependente de distribuição de alimentos aumentou de 72 mil, em 2000, para 868 mil — quase metade da população.
— A última guerra foi devastadora para a população — enfatiza Aaron Miller, consultor das negociações árabe-israelenses do Departamento de Estado dos EUA durante vários governos.
Já o pesquisador Shmuel Even, especialista em Inteligência do Instituto para Estudos de Segurança Nacional, em Tel Aviv, responsabiliza o Hamas, partido político com braço armado que governa Gaza. Segundo ele, o “conflito do Hamas com Israel e a Autoridade Palestiniana, além da atividade terrorista, cria insegurança”.
— E sem estabilidade, não há equilíbrio social e econômico — afirma Even. — Urgente é um cessar-fogo de longo prazo entre Hamas e Israel, que permitiria reconstruir Gaza. O problema é o Hamas não reconhecer a existência de Israel.
Mas Boussois faz um contraponto, ao enxergar na estratégia do governo conservador de Israel, comandado pelo premier Benjamin Netanyahu, a ideia de que o “Hamas é um inimigo confortável, porque apenas lança alguns foguetes”. E alerta:
— Netanyahu sabe que é perigoso acabar com o Hamas. O que irá acontecer? O Estado Islâmico, que ronda a Península do Sinai, seria um inferno para eles.
Para Aaron Miller, não há solução a curto prazo. Segundo ele, “não há liderança nos EUA, em Israel, ou no lado palestino para mudar a situação”. Otimista, o palestino Bashir conta que a vida segue em Gaza, apesar da falta de itens como água e eletricidade. Segundo ele, “você vê as pessoas buscando a vida”. Já a Unctad descreve um panorama sombrio: o relatório conclui que, sem mudanças, “a Faixa de Gaza vai se tornar inabitável até 2020”.
Fonte: O Globo
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