Há 13 anos como funcionário do Sindicato dos Comerciários de São Paulo, o advogado Maurício Bitencourte, de 40 anos, finalmente havia conseguido em 2006 uma promoção à coordenação do departamento jurídico da entidade sindical. A permanência no posto, contudo, durou apenas um ano. Em 2007, o profissional, pós-graduado em Direito do Trabalho, foi internado em uma clínica de reabilitação. Na época, misturava cocaína e maconha com bebidas alcoólicas. Em 2010, após mais duas internações, foi demitido e começou a consumir diariamente o crack, que era trocado por ternos, camisas, sapatos e um televisor. Com o irmão, Luiz Carlos Bitencourte, consumia o crack nos fundos da casa da mãe. Mês passado, os dois, agora desempregados, conseguiram acesso ao auxílio-doença, entrando numa assombrosa estatística do governo: o consumo de drogas no país cresce a cada ano, e, hoje, cocaína e crack já afastam, em relação ao álcool, mais que o dobro de trabalhadores do mercado profissional.
Em 2012, a quantidade de auxílios-doença concedidos a dependentes de drogas psicoativas, como cocaína e crack, cresceu 10,9% em relação a 2011, superando uma realidade que já ficou para trás, a de que a bebida alcoólica era o que mais prejudicava trabalhadores.
Os dados inéditos foram obtidos pelo GLOBO com o Ministério da Previdência Social e com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Nos últimos sete anos, o total de benefícios a usuários de drogas psicoativas mais que triplicou no Brasil. Se em 2006 eles somavam 9.730, em 2012 chegaram a 30.737. No mesmo período, a quantidade de dependentes de álcool afastados do emprego não sofreu grandes alterações e manteve-se em um patamar médio de 13.158. A primeira vez que a soma dos auxílios-doença a usuários de drogas psicoativas superou a de viciados em álcool foi em 2007, quando chegou a 16.351. Desde então, a diferença entre os dois só aumentou.
Nos últimos sete anos, a quantidade de auxílios-doença concedidos a usuários de drogas em geral, como maconha, álcool, crack, cocaína e anfetaminas, passou dos 900 mil. O Ministério da Previdência Social não informou o total gasto em 2012 com os benefícios relativos ao uso de drogas, mas O GLOBO apurou que o montante chegou a R$ 100 milhões. O auxílio-doença varia de R$ 678 a R$ 4.159, de acordo com a contribuição previdenciária. O valor mensal médio pago a um dependente de drogas psicoativas é de R$ 975,29, e a duração média de recebimento do valor é de 308 dias. Para ter direito a ele, o segurado precisa de autorização de uma perícia médica e tem de apresentar laudos e exames que comprovem a dependência química.
Só em janeiro, o total de pedidos de auxílios-doença aceitos pelo governo federal para usuários de drogas como cocaína e crack chegou a 2.457, mais que o dobro dos autorizados aos viciados em álcool: 1.044. O avanço do crack levou, no ano passado, o Ministério da Justiça a gastar R$ 142,4 milhões apenas em medidas de combate à droga, que, como já reconheceu o governo federal, tornou-se uma epidemia no Brasil. A psicanalista Ivone Ponczek, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas (Nepad) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), avalia que o aumento do número de afastamentos devido ao crack deve-se tanto ao crescimento, nos últimos anos, do número de dependentes químicos como à descriminalização do usuário de drogas, que passou a procurar por ajuda.
Ela observa que, a partir de 2006, coincide o crescimento do afastamento de usuários de drogas psicoativas do mercado de trabalho com o aumento do uso de crack no país. No Rio de Janeiro, ela ressalta que o fenômeno é mais recente: a droga passou a ser consumida de “maneira exorbitante” nos últimos quatro anos.
— De 2006 para cá, houve um aumento impressionante do uso do crack no país. No Rio de Janeiro, a droga entrou de maneira exorbitante nos últimos quatro anos, uma situação realmente calamitosa. Além do aumento do uso, a descriminalização do usuário fez com que houvesse mais possibilidade de ele pedir o auxílio-doença. Foram abertas mais portas para o tratamento e para o pedido de ajuda — ressaltou.
Em São Paulo, estado que historicamente concentra o maior número de auxílios-doença a dependentes químicos, o advogado Maurício Bitencourte tem recebido por mês R$ 2.880 do INSS. Ele e o irmão estão internados há três meses em um recanto, em Suzano (SP), que faz parte da Instituição Cláudio Amâncio, que trabalha com prevenção e recuperação de dependentes químicos. Na quarta-feira, quando O GLOBO visitou o local, Luiz Carlos Bitencourte estava na capital paulista, justamente para buscar o benefício, cujo pagamento foi autorizado até o final de abril.
Em 2011, São Paulo registrou 41.271 benefícios a dependentes químicos, dos quais 11.515 foram relativos a drogas psicoativas. O Rio de Janeiro foi o sexto estado com o maior número de afastamentos: 6.527, dos quais 1.184 foram relativos a drogas como cocaína e crack.
— Já tinha conseguido o auxílio por oito meses: de junho de 2011 a janeiro de 2012. O processo para obtenção não costuma ser rápido, leva meses. Não ia dar entrada agora, mas acabei mudando de ideia — afirmou o advogado.
A demora para a aprovação do benefício também é criticada por outros dependentes químicos, como o paulista Ivan Mergulhão, de 33 anos. No início deste mês, o ex-praticante de fisiculturismo conseguiu o auxílio-doença por apenas um mês, o que considera pouco. Em internação, ele consumiu o crack pela primeira vez aos 16 anos. Por anos, conseguiu conciliar o trabalho com as drogas, até ter uma overdose.
— Eu gastei a rescisão inteira de serviço de motoboy com drogas. Ao todo, já fui internado mais de 15 vezes.
Não é apenas o total de auxílios-doença a dependentes químicos de cocaína e crack que tem crescido no Brasil. Nos últimos anos, o número de atendimentos médicos a usuários de drogas em geral também aumentou na rede pública de saúde. Em 2012, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) registraram 7,5 milhões de atendimentos, elevação de 20,6% sobre 2011, quando foram registrados 6,2 milhões. Nos últimos quatro anos, o total de assistências oferecidas, que cresce a cada ano, passou dos 24 milhões e apresentou um salto de 51%.
Os dados inéditos foram obtidos a pedido do GLOBO com o Ministério da Saúde. De 2002 a 2011, o orçamento da pasta para iniciativas de saúde mental, que engloba o que é destinado a dependentes químicos, aumentou três vezes, passando de R$ 620 milhões para R$ 1,8 bilhão. Para reforçar o tratamento a usuários de droga, sobretudo viciados em crack, o Sistema Único de Saúde (SUS) recebeu em 2011 um reforço de caixa de R$ 2 bilhões, montante que deverá ser investido até 2014 e foi destinado ao programa do governo federal “Crack é Possível Vencer”.
O secretário nacional de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, Helvécio Miranda Magalhães Júnior, reconhece que o número de dependentes químicos tem crescido no país, fator que, segundo ele, explica o aumento do atendimento na rede pública. Ele aponta como outro motivo o aumento da busca por tratamento médico, realizada tanto pelo próprio dependente químico como por parentes e familiares. Na avaliação dele, o baixo custo do crack e o alto poder de vício da droga explicam o seu avanço:
— De um lado, a situação da dependência química tem aumentado de maneira perceptível. De outro, as pessoas têm procurado mais ajuda no país, o que mostra que o nosso serviço tem respondido, mas precisamos ampliá-lo, evidentemente.
A avaliação do secretário nacional é semelhante à da psicanalista Ivone Ponczek, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas (Nepad) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Ela observa que, por ser uma droga de fácil acesso, o número de dependentes de crack tem aumentado no Brasil nos últimos seis anos. No subcentro de atendimento da entidade que coordena, sete de cada dez dependentes químicos são usuários da droga.
— Como o crack é mais barato e de fácil acesso, acaba sendo uma opção para muitos dependentes. Causa muito rápido a dependência e já chegou a todas as classes sociais. Nós observamos, no Rio, que os usuários são cada vez mais jovens — afirmou Ivone.
Hoje, o Brasil perde apenas para os Estados Unidos em usuários de cocaína e crack. Segundo pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, o país possui, ao todo, 2,8 milhões de usuários dessas duas drogas, enquanto os Estados Unidos apresentam 4,1 milhões. Se considerados os entorpecentes de maneira isolada, o Brasil possui o maior mercado de crack do mundo, que representa 20% do total.
O levantamento mostrou ainda que a Região Sudeste concentra 46% do total de usuários de crack e cocaína, num total de 1,4 milhão. Na sequência, aparecem o Nordeste (27%), Centro-Oeste (10%) e Norte (10%). Em São Paulo, estado com maior concentração de usuários de crack, o programa de internações compulsórias realizou, em um mês, 223 internações, prestou 1.509 atendimentos e recebeu 8.171 ligações por informações.
Fonte: O Globo