A vida que devemos a Arthur

O bebê atingido por uma bala perdida ainda no útero da mãe expõe a tragédia da violência no Rio de Janeiro e a derrocada da política de segurança pública no estado

A vida que devemos a Arthur

 

Arthur, Vanessa e Samantha são três faces da dramática onda de violência que atinge o estado do Rio de Janeiro. Na manhã da quarta-feira 5, Samantha Gonçalves, de 14 anos, brincava com os colegas no pátio do Colégio Estadual Ricarda Leon, em Belford Roxo, quando uma bala perdida perfurou um de seus pulmões. Socorrida, ela sobreviveu após passar por uma cirurgia. Um dia antes, Vanessa Santos, dez anos, foi atingida na cabeça por um disparo. Ela estava dentro de casa, em uma comunidade de Lins de Vasconcelos, na zona norte do Rio. Vanessa não resistiu aos ferimentos e morreu. Na sexta-feira 30, um caso ainda mais emblemático da falta de segurança no Rio de Janeiro chocou o Brasil. Uma bala perfurou o quadril de Claudineia dos Santos Melo, 27 anos, acertando o feto que estava em seu ventre. O tiro penetrou o pulmão, fraturou duas vértebras e se alojou na coluna de Arthur, antes mesmo que ele viesse ao mundo. O caso ganhou repercussão fora do País e expôs de maneira brutal o flagelo de uma geração dilacerada pelo caos na segurança pública.

BATALHA Grávida de nove meses, Claudineia é internada após ser atingida por uma bala perdida em Duque de Caxias, no Rio. Internado em estado grave, o bebê recebe visitas do pai Klébson e de familiares

Segundo levantamento da ONG Rio de Paz, nos últimos três anos morreram pelo menos 20 crianças alvejadas por disparos de armas de fogo no estado. “São pessoas que não tem preservado o direito à vida nem o direito de vir à vida”, afirma Antônio Carlos Costa, presidente da entidade. Alguns fatores ajudam a explicar a explosão das estatísticas. Um deles é o colapso das Unidades de Polícia Pacificadoras, inauguradas em 2008. “O modelo foi implementado pela metade, o controle de um território não pode estar baseado somente na presença policial”, diz Carolina Ricardo, coordenadora do Instituto Sou da Paz. “Não existe um plano nacional de segurança pública com metas claras, a polícia entra nas favelas atirando sem seguir os protocolos”, afirma Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional. “Falta um posicionamento do estado sobre os limites do uso da força e das armas letais para não alimentar o ciclo de violência nesses territórios.”

Medicina de guerra

Grávida de nove meses, a paraibana Claudineia colecionava as primeiras roupas de Arthur. Na sexta-feira 30, ela havia saído de casa para comprar o carrinho do bebê. A bala que perfurou seu útero teve origem num confronto entre policiais militares e traficantes na rua Frei Fidélis, um dos acessos à Favela do Lixão, em Duque de Caxias. Socorrida por moradores do bairro, ela foi levada para o Hospital Municipal Doutor Moacir Rodrigues do Carmo. Às 18h27, Arthur nascia da agonia e do desespero de uma cesariana realizada às pressas. Logo depois, foi transferido para o Hospital Estadual Adão Pereira Nunes, onde permanece internado na UTI Neonatal. “Víamos ele tentando respirar. Nunca drenei alguém tão novo. É uma situação típica de medicina de guerra”, afirma Eugenio Miller, primeiro chefe de cirurgia do hospital.

EXAMES Ultra-som mostra que o bebê teve os pulmões perfurados, duas vértebras quebradas, a coluna atingida e corria o risco de ficar paraplégico

Não apenas a medicina é de guerra. O cotidiano ao qual essas pessoas estão expostas é análogo a países em confronto. De acordo com dados da ONG Anistia Internacional, 742 pessoas morreram atingidas por balas perdidas somente nesse ano na região metropolitana do Rio, uma média de quatro pessoas por dia.

Klébson Cosme da Silva, 27 anos, pai de Arthur, vive dias de aflição visitando o bebê e cuidando de Claudineia, que recebeu alta médica na quinta-feira 6. “Não quero saber quem atirou, só quero que minha mulher e meu filho fiquem bem.” O pai de Vanessa, Leandro de Matos, responsabiliza policiais militares pelo crime. “Foi um assassinato. Quero ver quem fez isso ser punido”, diz.

Famílias como essas, que já são vítimas da pobreza e da falta de oportunidades, sofrem mais uma vez com o trauma da perda ou da dor. Klébson e Claudineia vieram da Paraíba para tentar oferecer uma vida melhor aos familiares. Encontraram um campo de batalha. “Episódios assim deixam parentes, colegas e professores devastados, é um luto brutal”, diz Costa, da ONG Rio de Paz. Os pais de Arthur escolheram o nome do bebê por ser forte, nome de rei. É o que Arthur tem demonstrado já que, além da batalha pela vida desde o útero, agora a notícia é que ele poderá, sim, mexer as pernas.

SEGURANÇA FALIDA
Disparos de arma de fogo no Rio de Janeiro em 2017

Junho 650
Vítimas fatais – 106
Feridos – 135

Maio 478
Vítimas fatais – 137
Feridos – 115

Abril 350
Vítimas fatais – 76
Feridos – 101

220 tiroteios foram registrados na última semana de junho na região metropolitana do Rio de Janeiro

197 mortes por bala perdida entre 2014 e 2015 colocam o Brasil em 1º lugar no ranking de ocorrências na América Latina

34 crianças morreram por arma de fogo desde 2007 só no Rio de Janeiro

Fonte: Isto é

Bandidos castigam moradores segundo suas próprias regras nas comunidades

Moradores e rivais são submetidos a punições do ‘tribunal do tráfico’

A mulher foi a um baile e deixou os filhos com a vizinha. Ao voltar encontrou bandidos na sua porta. Eles reprovaram a atitude da mãe e rasparam a sua cabeça na rua, sob ameaças. Apesar da humilhação e do medo, a mulher diz em vídeo: “Podem fazer isso. Não vou reclamar”. O assunto provoca polêmica, ao contar com a aprovação de muitos, e desperta o questionamento: que autoridade tem os bandidos para punir alguém nas favelas?.
Mulher (à esq.), foi barbaramente espancada por roubo de celular na Cidade de Deus. Outra vítima teve cabelo raspado: rotina nas favelasReprodução Vídeo

Há mais de 10 mil vídeos fáceis de serem acessados na internet, que mostram que 20 anos após a promulgação da lei 9.455/97, que pune a tortura, esse tipo de crime ocorre a cada dia mais sem controle no Rio de Janeiro. Moradores de comunidades da capital e Região Metropolitana são submetidos a castigos do ‘tribunal do tráfico’ e viram protagonistas de “filminhos de terror”, viralizados tampém pelo whatsapp. Ao todo, 795 casos de tortura tramitam na Justiça fluminense. Mas atrocidades que ocorrem nos becos, casebres e vielas das comunidades, muitas vezes não têm este desfecho.

Segundo levantamento feito pelo Tribunal de Justiça do Rio, a pedido do DIA, do total de casos de tortura nos últimos dez anos, 402 já tiveram pareceres dos juízes cariocas, com apenas 162 condenações de torturadores e 77 absolvições. Os acusados são ligados ao tráfico, à milícia e à propria policia.

As bárbaras “penitências” são por diversos motivos. Os ‘julgamentos’ dos bandos vão desde reprimendas por roubos de celulares, a supostos envolvimentos do ‘réu’ com facções criminosas inimigas.

Numa das ações recentes, traficantes da Cidade de Deus, em Jacarepaguá, obrigam uma jovem a segurar, uma folha onde se lê: “Eu tô tomando um salve (surra) do Comando Vermelho”. A justificativa, feita em voz alta pela vítima, era pelo suposto roubo de um celular. Indefesa, estende as mãos, e os criminosos desferem violentos golpes com madeiras, que também atingem seu rosto e suas costas. Ela implora, inutilmente, pelo fim do castigo, gritando que o braço fora quebrado. Mas continua a apanhar sem piedade.

Campanha e condenação a torturadores

O advogado do Instituto de Defesa dos Direitos Humanos, João Tancredo, defende a realização de uma campanha para a não propagação de vídeos de tortura pelas redes sociais e whatsapp. “É preciso também mais condenações de criminosos envolvidos em torturas, principalmente as seguidas de mortes”, apela.

Boa parte dos criminosos que exibe torturas nas favelas do Rio em vídeos, segundo João Tancredo, já tem penas altas, e não está nem aí para nova condenação, de até 8 anos.
Victória Grabois, do Grupo Tortura Nunca Mais, se espanta. “Na ditatura, torturas eram praticados em porões, acobertadas. Hoje é tudo exibido para o mundo inteiro” lamenta. Em nota ao DIA, o Google admite não dar conta de retirar todos os vídeos de torturas do ar. Alega que ao todo são postados 450 horas de filmes, de tudo quanto é tipo de assuntos, por minuto, no mundo inteiro.

‘Reflexo do que a sociedade quer’

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), Marcelo Chalréo, diz que o momento atual é “reflexo do que a sociedade quer”. “Há leis e há prisões. Tanto que a população carcerária triplicou em dez anos. O que falta é a sociedade derrubar essa tradição de punição ao estilo ‘olho por olho, dente por dente’”, opina.

“O justiçamento é perverso, vem se perpetuando e afrontando o estado de direito. Punir não é sinônimo de vingança”, endossa o deputado Marcelo Freixo (