A NOITE, O CHÃO E MAIS NADA: UM PERFIL DA CRESCENTE POPULAÇÃO DE RUA DO RIO
Cidade tem quase 15 mil moradores de rua e somente 2 mil vagas em abrigos
- Um vento gelado corta a Avenida Marechal Câmara, no Centro, no meio da madrugada. Sentado sobre um papelão e duas cobertas, enrolado numa manta velha, Luiz Cláudio, de 45 anos, é o único acordado. Ao seu redor, o silêncio de dezenas de pessoas que se encolhem na calçada e uma imensidão de incertezas, os motivos da angústia que lhe tira o sono há sete meses. Ex-aluno de uma faculdade de História, ele já foi bancário, almoxarife e operário. No ano passado, quando o desemprego apertou na cidade mineira de Juiz de Fora, onde vivia com a família, decidiu jogar a sorte no Rio. Até agora, só perdeu. O dinheiro acabou; ele não conseguiu trabalho. Luiz Cláudio se juntou a uma legião de 14.279 pessoas, segundo um levantamento da prefeitura, que têm nas ruas do Rio o único pouso. Tornou-se um dos muitos rostos de uma convulsão social notada a cada esquina carioca, agravada pela crise econômica. Os caminhos dessa gente, quase sempre, são invisíveis à maioria.
Desemprego que derruba
O Rio, hoje, tem mais moradores de rua que a população de 15 municípios do estado, como Santa Maria Madalena e Rio das Flores. Em algumas áreas, a quantidade de sem-teto é, oficialmente, o triplo de três anos atrás, embora pareça ainda maior. E grande parte — 5.895 deles, ou 41,29% — chegou à sarjeta há menos de um ano, de acordo com o estudo do município, realizado em 2016. Trata-se de um flagelo para o qual a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos busca alternativas. Mas o número de vagas em abrigos revela o quanto é grave a situação: são 2.155, distribuídas em 37 instituições.
Luiz Cláudio buscou ajuda no Abrigo Stella Maris, na Ilha do Governador, assim que acabou seu último centavo. Não suportou a superpopulação do lugar nem a insalubridade das instalações. Preferiu o relento ao que viu. Foi parar, primeiro, na Uruguaiana.
— Eu tremia. E, apesar de não ter um cobertor, não era de frio. Botei um papelão no chão, um tênis debaixo da cabeça, me agarrei à mochila com meus documentos e tentei dormir. Mas logo percebi que não dava — diz ele, explicando seus motivos. — Fui roubado duas vezes, e graças a Deus não levaram a pastinha com minhas recomendações de emprego. Nunca se sabe o dia de amanhã. Passei a catar papel. Mas pagam só R$ 8 por 300 quilos, mal dá para almoçar. As portas se fecharam. Para muitos, se você está na rua, é drogado ou ladrão. Você vira um pária, fica à margem da sociedade. Não quer dizer que seja um bandido. É um “nada” — diz Luiz Cláudio, que ainda não criou coragem de contar sua situação à filha, de 18 anos, para não deixá-la “desesperada”.
Devoto de São José, santo da família e do trabalhador, Luiz Cláudio agora se impõe um limite: espera julho chegar, mês em que poderá sacar seu FGTS inativo. Já tem tudo planejado: alugará um imóvel, continuará à procura de emprego e, se tudo der certo, buscará a família. Se o futuro não sair como o esperado, diz que não hesitará. Pedirá ajuda numa igreja para voltar a Juiz de Fora, mesmo com “uma mão na frente e outra atrás”.
A história dele mostra que, muitas vezes, a linha entre a vida sob um teto e o relento é tênue. As ruas estão cheias de relatos de tragédias que se desenrolaram como um improviso do qual sair parece ser algo impossível. Aos 30 anos, 12 de rua, Dênis Linhares não tem mais um lar desde que sua avó, com quem morava, morreu. O casal Paulo e Suzana Silva, de 42 e 40 anos (respectivamente), ficou desempregado, não pôde mais pagar o aluguel de uma quitinete em Antares, em Santa Cruz, e, há nove meses, foi parar numa das esquinas que concentram moradores de rua no Centro, entre as avenidas Graça Aranha e Almirante Barroso, e agora se entregam ao álcool.
MOTIVAÇÕES EM COMUM
Destinos que não são banais, mas extraordinariamente comuns nas ruas. Em seu levantamento, a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos identificou causas que levaram quase 15 mil pessoas a viver nas ruas do Rio. Conflitos familiares (resposta de 34,37% deles), o álcool e as drogas (20,13%) e o desemprego (13,32%) são as mais citadas. Também aparecem na lista a fuga da violência nas comunidades em que viviam (2,32%), o despejo ou a perda da residência (1,85%), a moradia longe do trabalho (0,39%) ou mesmo vontade própria (8,96%).
No rumo de André Luiz Reis, de 34 anos, uma sucessão de infortúnios o levou a perambular pela Praça da Cruz Vermelha, no Centro. Baiano desempregado em Camaçari, faz 70 dias que chegou ao Rio. Tempo suficiente para emagrecer, pegar uma pneumonia e trocar os sorrisos pelo olhar perdido. Nada parecido com o sonho que ele alimentou ao vir para a cidade que ele admirava pela televisão.
Desembarcou com R$ 1.700, frutos de um bico que tinha feito na Ilha de Itaparica, na Bahia. Seu plano era alugar um quarto em Duque de Caxias e buscar trabalho. Estava tudo acertado. Mas, ainda com a bagagem nas costas, logo depois de sacar o dinheiro num banco, foi assaltado por um adolescente armado com uma faca. Ficou só com uma mochila e documentos. Até suas ferramentas de pintor, que estavam numa mala, ele perdeu.
— Não sabia o que fazer. Nunca tinha dormido na rua. Bateu o medo de que fizessem algo perverso comigo. E veio logo a depressão, por saber que minha família está na Bahia precisando de ajuda — conta André, que, na última quarta-feira, não pensou duas vezes ao pedir ajuda a uma equipe de abordagem especializada da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos. — Isso não é vida. Quero recomeçar.
A POPULAÇÃO DE RUA NA CIDADE
-
Dezenas de moradores de rua dormem em calçada da Avenida Marechal Câmara: no Rio, são quase 15 mil pessoas sem lar que perambulam pelas ruasFoto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo
-
Em Copacabana, morador lê um livro na calçada em que passa as noites. Bairro é o segundo do Rio com maior quantidade de pessoas em situação de ruaFoto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo
-
Ainda no bairro, uma mulher dorme sentada em um ponto de ônibus da Avenida Nossa Senhora de CopacabanaFoto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo
-
Já no Centro, a esquina das avenidas Almirante Barroso com Graça Aranha é um dos trechos que mais concentram moradores de rua no RioFoto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo
-
Na região, um grupo deles dorme em frente a uma agência bancáriaFoto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo
-
Outro homem dorme dentro do banco, próximo aos caixas eletrônicosFoto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo
-
Evandro dos Santos, o Baixinho, de 41 anos, é um dos moradores que há mais tempo ocupa a região. Já são mais de 30 anos de ruaFoto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo
-
Marcos Antônio Oliveira, de 43 anos, chegou há menos tempo: cerca de um ano. Ele veio em busca de trabalho na Olimpíada, mas não conseguiu. As imediações da Almirante Barroso, por enquanto, são seu larFoto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo
-
Morador de rua dorme na calçada da esquina, de dia movimentada, à noite ocupadas pelas pessoas sem larFoto: Alexandre Cassiano / Agência O Globo
Na Avenida Olegário Maciel, na Barra, Paulo César Carvalho, de 51 anos, é outro que vive sem lar. Ele diz que ainda não se considera um morador de rua. “Estou me virando”, afirma. Também se perdeu numa espiral de insucessos. Já teve uma empresa de construção civil com 18 funcionários na Região dos Lagos. A crise, então, fez com que, de patrão, ele virasse empregado. Veio ao Rio para trabalhar. Ganhava R$ 1.200 por semana. Mas o serviço acabou, e o chefe se mudou para Portugal. Perdeu o prumo, só foi acolhido numa maloca (nome que os moradores de rua dão aos lugares onde dormem). Divide uma calçada sob uma marquise com cerca de 15 pessoas.
No grupo, há homens e mulheres. Adolescentes e idosos. A todo momento, alguns dos adultos precisam acalmar uma senhora com problemas psiquiátricos. Em meio ao material que guardam há uma prancha, com a qual um deles costuma passear pela praia, embora não sabia surfar. Um outro jovem, que morava numa favela de Santa Cruz, admite ser dependente químico, e diz que prefere ficar ali do que sofrer represálias da milícia que controla a comunidade.
DISPUTA POR RESTOS DE COMIDA
Na quinta-feira à noite, muitos deles tinham passado o dia sem comer. A fome acabou depois que um casal desceu de um carro e começou a entregar quentinhas. Foi um alvoroço. Mas não havia para todos. Alguns acabaram ficando com fome. Penúria semelhante foi vista dois dias antes num dos endereços mais nobres do país, Ipanema. Por volta das 20h, Cristiane Francisca da Silva, de 44 anos, fez sua primeira refeição do dia: um abacate, sobra de uma feira. Há cinco anos que o céu da Praça General Osório é seu teto. Ex-moradora da Cidade de Deus, ela perdeu a direção quando não resistiu à tentação das drogas. Foram anos na cadeia, depois, a rua. Ela conta que está “limpa” desde janeiro, por esforço próprio. “Já viram um centro de recuperação público no Rio para mulheres?”, pergunta. Continua, contudo, sem emprego. Nem biscates consegue. Rotineiramente, passa fome. Apesar de tudo, não perde a capacidade de se indignar com a situação que compartilha com milhares de pessoas.
— Quando um mercado aqui perto fecha as portas, é preciso se apressar para catar os restos que jogam fora. É justo ter que comer o que está no chão, no lixo? É humilhante demais, mas a fome e a sede são insuportáveis. É por isso que, antes de a morte propriamente dita chegar, o morador de rua já está morto. Se torna invisível. É difícil que nos enxerguem como seres humanos. É mais fácil não nos ver — afirma ela, que ainda tem um sonho. — Queria ver minha família e dizer que estou trabalhando.
Histórias que se encontram
Márcio Prado, de 42 anos, é de Macaé. Vende livros e objetos reciclados nas ruas de Botafogo. A terra natal de Marcos Antônio de Oliveira, de 43, é Bom Jesus do Itabapoana, mas ele vive de bicos no Centro do Rio. Vindos do interior do estado, os dois chegaram à capital atrás das oportunidades nas obras da Olimpíada de 2016. Acabaram no sereno, sem trabalho formal. Vagam sem teto levando algumas das características mais comuns entre os moradores de rua da cidade.
De acordo com o perfil dessa população traçado pelas equipes de abordagem da Secretaria municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, Márcio e Marco Antônio estão na faixa etária predominante entre os que não têm lar, dos 25 a 59 anos — que, no fim de 2016, eram 11.234 (78,67% do total). Os dois são negros, e, segundo a prefeitura, pretos e pardos somam 11.292 (79,08%) das pessoas que vivem nas ruas. Além disso, nasceram fora do município do Rio, como 6.778 (47,47%) dos que perambulam pela cidade. Alheios aos números, têm, entre si, outra coisa em comum: dizem que só voltam para casa de cabeça erguida.
— Não sou um cara que desiste, não. Acredito que dará tudo certo. Sou pedreiro, desenho, pinto… Vou arrumar trabalho. Por enquanto, meus parentes não sabem de minha situação. Não quero que eles saibam. A rua é violenta, as pessoas não se entendem bem — diz Marcos Antônio.
Márcio é da mesma opinião:
— Desde que cheguei, trabalhei numa lanchonete, num quiosque na praia e como auxiliar de obras. Vou conseguir. O mais difícil é a saudade de casa. Mas agora não vou voltar, não. Assim, humilhado, de forma alguma.
Enquanto não alcançam seus objetivos, os dois levam a vida “no corre”, o que, no linguajar das ruas, significa um trabalho informal, muitas vezes com duração de algumas horas. E sem “manguear”, ou seja, sem pedir esmolas. Mas, nesse caso, destoam da maioria. Só 17,72% (2.530) moradores de rua têm alguma ocupação. Os outros 82,28%, não.
Por uma trilha parecida com a dos dois segue Fabiano de Azevedo, de 32 anos. Faz três meses que ele vive sem lar, só que por uma decisão voluntária, depois de se desentender com a família e de largar o trabalho de garçom em Maricá. Passou pelo Centro, pelo Aterro e, agora, vive nas calçadas de Copacabana. De noite, sua maloca fica nas proximidades da Praça Serzedelo Correa, onde aproveita as horas vagas para ouvir música num radinho e ler — ganhou livros de uma ONG. De dia, bem cedo, vai para a praia, onde conseguiu um bico num quiosque. Alguns dias, consegue ganhar até R$ 80.
— Assim como eu, aqui, em Copacabana, muitos moradores de rua vivem “no corre”. Não nos preocupamos com comida nem com produtos de higiene pessoal porque recebemos doações. Por isso, meu grande receio é me acostumar com a rua. Não quero. Vou juntar os trocados que ganho para tentar alugar logo um cantinho — diz Fabiano.
EM CADA BAIRRO, CARACTERÍSTICAS PRÓPRIAS
De fato, ter alguma ocupação é um dos aspectos que marcam a população de rua do bairro, afirma Jonathan Marques, coordenador da equipe de abordagem especializada da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos. Há anos tentando convencer grupos a irem para abrigos, ele consegue traçar uma geografia particular do Rio.
Normalmente, diz Jonathan, a porta de entrada de quem fica sem lar é o Centro, que concentra a maior quantidade de moradores de rua (2.638, ou 18,47% do total). Recentemente, no entanto, com o Programa Centro Presente, Jonathan afirma que houve uma migração de parte deles para bairros próximos. De forma geral, adolescentes , grande parte usuários de drogas, deslocaram-se para Botafogo e Laranjeiras. Adultos optaram por Copacabana — bairro que, no fim de 2016, ocupava o segundo lugar no ranking da população de rua, com 928 pessoas (6,5% do total).
Ainda na Zona Sul, a Glória costuma concentrar aqueles que vendem objetos nas calçadas. Na Zona Oeste, eles procuram pontos movimentados como a rodoviária de Campo Grande e o calçadão de Bangu. Na Zona Norte, o entorno de bairros como Madureira, Jacaré e Bonsucesso concentra usuários de drogas, principalmente nas proximidades de favelas que vendem crack.
As drogas também são o maior problema da população de rua na Zona Portuária e na Lapa. Em Cascadura, a principal questão é o alcoolismo. Entre os que falam sobre o assunto, as justificativas para o vício variam muito, porém boa parte afirma que o consumo é uma forma de amenizar a fome, o frio e a tristeza. No levantamento da secretaria, 76,77% (10.962 pessoas) declararam utilizar algum tipo de substância, lícita ou não. Cachaça é a mais comum. Maconha, cocaína, tíner e crack também aparecem na lista.
ABRIGO PARA GRÁVIDAS
Foi justamente para abrigar usuárias de drogas grávidas ou que tiveram filhos recentemente que a prefeitura inaugurou, na semana passada, um abrigo em Campinho. Erika Alves Mendonça, de 36 anos e no sexto mês de gestação, foi a primeira a chegar. Antes, viveu uma trajetória de turbulências. Aos 17 anos, caiu no vício. Iniciou com a maconha; depois, o álcool e a cocaína. As desavenças com o padrasto pioraram tudo. E assim começaram as estadas na rua. Teve quatro filhos, nenhum deles criado por ela. Foi abusada sexualmente duas vezes. A última passagem ao relento completaria um ano este mês: dormia em frente ao Hospital Souza Aguiar, no Centro.
— Não desejo uma gravidez na rua nem para um cachorro. Sofri todo tipo de preconceito. As pessoas me chamavam de mendiga e cracuda porque hoje em dia, para a sociedade, todo mundo que dorme na calçada é viciado em crack — diz Erika, cuja família vive no Morro da Formiga, na Tijuca. — O mais difícil é voltar para casa. Bate a vergonha dos parentes e dos vizinhos.
Secretária municipal de Assistência Social e Direitos Humanos, Teresa Bergher reconhece a dificuldade de lidar com a questão. Ela defende que não adianta a prefeitura acolher essa população sem inseri-la socialmente e no mercado de trabalho. Teresa diz que vem buscando parcerias para a capacitação dos abrigados. Além disso, ressalta a retomada de um programa que patrocina a volta à terra natal daqueles que quiserem (este ano, 60 pessoas foram beneficiadas). Ela vem fazendo mudanças na estrutura da secretaria, como as abordagens na rua sempre acompanhadas por assistentes sociais, mas admite haver problemas e afirma que encontrou uma rede de abrigos em péssimas condições.
— Realmente, ficou defasado o número de abrigos e de funcionários quando se tem um aumento tão absurdo na população de rua. No entanto, vale lembrar que quantidade não é sinônimo de qualidade. Desde o início da nossa gestão, estamos investindo na capacitação dos agentes — garante a secretária.
JOVENS NAS RUAS
Um bom trabalho social pode ser o divisor de águas na vida de todos, sobretudo das 129 crianças e dos 396 adolescentes que vivem nas ruas, segundo a estimativa da prefeitura. Pode ajudar jovens como Rafaela dos Santos, de 19 anos, e Lucas Mendes, de 20, a darem uma guinada. Ambos vivem nas ruas e têm o sonho de se tornarem cantores. Ela, na adolescência, passou por vários abrigos da cidade. Agora, depois de completar 18 anos, dorme nas imediações da Praça da Cruz Vermelha. Ele saiu de casa, na comunidade do Salgueiro, em São Gonçalo, há um ano, depois de uma briga com a família. Dorme nas esquinas de Ipanema, onde conseguiu trabalho numa banca de jornais. Ainda lembra dos detalhes de seu primeiro dia na rua.
— Quando cheguei ao Rio, fui a Copacabana, deitei na areia da praia e pensei se conseguiria ter o que comer no dia seguinte. Eu ainda me preocupo com isso porque não nasci para roubar nem para traficar. Mas tenho um trabalho e componho minhas músicas. Um dia vou chegar lá.
Relatos da rua
Sérgio de Mello
Aos 36 anos, vive nas ruas da Barra há dez dias. Saiu de São Paulo depois de uma tentativa de suicídio e de sofrer humilhações de policiais militares que, em vez de acudi-lo, o agrediram.
Galhardo Fulvio
Carioca, brigou com a família e foi jovem para a Região dos Lagos, onde também já viveu nas ruas. Voltou ao Rio na semana passada. Em Copacabana, faz de um ponto de ônibus o seu abrigo.
Paulo César
Ex-surfista na Região dos Lagos, já foi empresário e trabalhador da construção civil. Está desempregado e sem lar há três meses. Foi acolhido numa maloca da Avenida Olegário Maciel, na Barra da Tijuca.
Alex Sandro de Jesus
Cabeleireiro, oriundo de Além Paraíba, em Minas, está há 20 anos nas ruas. Homossexual assumido, de 49 anos, diz que leva a vida brincando e sorrindo. Mas, à noite, antes de dormir, cai no choro de tristeza.
Evandro Santos
Conhecido como Baixinho, de 41 anos, está na rua desde os 10. Virou um mandachuva no Centro, respeitado e temido pelos outros moradores de rua. O sonho? Conhecer a apresentadora de TV Ana Maria Braga.
Rafael Santos
Aos 31 anos, ficou desempregado e foi despejado com a mulher da casa em que vivia na comunidade Joaquim de Queiroz, em Ramos. Vende balas na rua. Mas, hoje, não tem dinheiro para comprar mercadoria.
Cômodos na calçada
Na Rua Riachuelo, no Bairro de Fátima, famílias recriaram seus quartos, com colchões, móveis e brinquedos de criança. Circulando pelo Centro, a carrocinha onde vive um morador de rua tem TV e ventilador. Na pouco movimentada Rua Benedito Otoni, em São Cristóvão, há geladeira e uma espécie de cabana com colchão, que fica todo molhado sempre que chove. São retratos de um Rio em que muitos, sem terem aonde ir, montam seus cômodos nas calçadas, mesmo que sem paredes, sem teto nem porta.
Em São Cristóvão, quem limpa e cuida de tudo é seu Coroa, de 60 anos. Ex-presidiário, depois de 18 anos na prisão, já faz mais de 20 que ele está nas ruas. Nem lembra mais o que é ter uma casa de verdade. Mas, há quatro anos, fez de um pedaço da Benedito Otoni o seu lar, onde tem até um altar, como imagens de São Jorge, Santa Bárbara, Nossa Senhora da Conceição, Ogum com enfeites de Natal, caboclos e um preto velho.
— No passado, escolhi a vida má. Agora, estou pagando — acredita ele, com um terço pendurado no pulso, outro no pescoço.
Hoje, no entanto, só costuma seguir o caminho do bem. É conhecido de todos na vizinhança. E acolheu em sua “residência” outro desvalido, Emanuel Claudino da Silva, de 58 anos, mais conhecido como Lula, por causa da semelhança com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Na quinta-feira passada, Coroa preparava uma sopa para o amigo e ele, num fogareiro improvisado no chão. Enquanto isso, Emanuel se questionava, falando consigo mesmo, deitado no chão, olhando o céu nublado daquela noite:
— Será que vai chover hoje?
E não era uma mera preocupação com o tempo. Há anos com dificuldades para caminhar por causa de um derrame que lhe deixou sequelas, horas antes ele tinha sido atropelado por um carro na rua. Chegou a ir ao hospital, mas foi logo liberado. Mas continuava com dor. Sequer podia andar.
— Se chover, alguém vai ter que me levar para o outro lado da rua, onde tem uma marquise. Não consigo levantar. Será que o Coroa vai me aguentar? — perguntava Lula.
Tensões na Zona Sul
Na Zona Sul, embora também existam moradores de rua conhecidos pelos vizinhos, como no caso de Seu Coroa, as relações entre os que não têm lar e os que vivem nos endereços formais, muitas vezes, são tensas. A alta voltagem está expressa em postagens de comunidades nas redes sociais. Em Botafogo, por exemplo, são muitas as queixas de que parte dessa população estaria envolvida em roubos e furtos na região, sobretudo nas imediações da Praça Nelson Mandela. E, em Copacabana, reclamações devido ao aumento do número de pedintes geram até crescentes reivindicações de internação compulsória, o que é vedado por lei.
Tony Teixeira, presidente da associação Viva Copacabana e vice-presidente da Associação de Moradores de Copacabana (Amacopa), enumera os problemas que exaltam os ânimos.
— Eles defecam e fazem xixi nos lugares, tornam as praças hostis… Acionamos sempre a prefeitura, mas eles têm limitações orçamentárias. É um problema que o poder público não pode admitir que aconteça — defende.
Murillo Sabino, co-fundador do Projeto Ruas, no entanto, tem outro ponto de vista. Ele procura fazer a ponte entre a população de rua e os demais residentes, ofertando atividades e oportunidades para as pessoas em situação de vulnerabilidade social. Murillo conta que o grupo chegou a fazer 400 “prints” de discursos de ódio em comunidades do Facebook que têm como tema Copacabana, Botafogo e Leblon, bairros onde o projeto atua.
— Existem pessoas que entendem que a população de rua é uma questão a conjuntural da cidade e querem ajudar. Outras estão abertas ao diálogo. Mas há aquelas que estão fechadas, que pregam o uso de violência para acabar com o problema. Com bases nestes discursos de ódio, iniciamos a série de vídeos “Minha história conta”, onde moradores de rua contam a sua história e sua visão sobre violência, entre outros assuntos — conta.
Já na Barra da Tijuca, na Zona Oeste, a proposta da Associação de Moradores e Amigos do Jardim Oceânico (Amar) é articular as várias instituições que oferecem ajudas à população de rua, como igrejas e Ongs, junto com a prefeitura, para buscar soluções mais eficazes para quem perambula pelo bairro.
— Com a crise e o fim das obras olímpicas, temos visto um grande aumento da população de rua na região. Nosso objetivo é criar uma rede assistencial que se fale e pense em soluções, porque é grave a situação. É um absurdo que aqui perto não exista uma albergue popular onde eles possam dormir e ser acompanhados — diz Leonardo Cunha, diretor administrativo da associação.
VIDAS À SORTE
Enquanto as discussões continuam, são milhares de vidas que continuam à sorte, no sereno. E muitos moradores de rua resistem a ir para os abrigos quando são abordados pelas equipes da prefeitura. Mariovaldo da Silva Ribeiro tem 19 anos e, há cinco, desde que perdeu os pais, mora na rua, atualmente na Praça Demétrio Ribeiro, em Copacabana. Ganha a vida vendendo bala e se diz incomodado com quem tem medo dele.
— Algumas pessoas são preconceituosas e acham que eu vou assaltar. Mas eu moro aqui, não quero problema. Já morei em abrigo quando era menor, mas depois que fiquei grande, não pude mais ir. No (abrigo) de adulto eu nunca fui. Mas todo mundo diz que é esculachado, que não tem água, roupa para gente — diz ele.
Já Edson Trancoso de Nazaré, de 61 anos, desde os 4 chama a rua de sua casa. Órfão, conta que ainda pequeno fugiu da casa da irmã, que o obrigava a trabalhar.
— Eu tinha de esperar os três filhos dela comerem. Se sobrasse algo, aí sim, eu comia — lembra ele, uma das mais de 9.200 pessoas que vivem nas ruas e dizem não ter um único vínculo familiar.
Fonte: O Globo
You have to Login