Para ajudar nosso planeta, além da coleta seletiva, é necessário reduzir o consumo desenfreado para produzir menos lixo.
Dar destino correto aos 30 bilhões de toneladas de lixo gerados
anualmente pela humanidade é um problema cada vez mais complexo. A cada ano, o
desafio aumenta. O caminho para solucioná-lo passa por uma mudança profunda na
maneira como consumimos.
O professor paulista Maurício Waldman recorreu a ferramentas
multidisciplinares – como um doutorado em geografia, um mestrado em antropologia
e uma gradução em sociologia – para escrever Lixo: cenários e desafios
(Cortez Editora), um dos dez finalistas do Prêmio Jabuti 2011 em Ciências
Naturais. Resultado de uma tese de pós-doutoramento em geografia na Universidade
de Campinas (UNICAMP), seu trabalho traça uma radiografia assustadora da questão
do lixo no mundo e no Brasil, lastreada em mutos números. Waldman sublinha que
não há planeta para tanto lixo e que só uma revisão dos hábitos de consumo pode
trazer uma saída para o problema.
Maurício Waldman
É pós-doutor em geografia pela Unicamp e autor do livro Lixo: cenários e desafios, um dos finalistas do Prêmio Jabuti 2011. |
Em seu livro o sr. afirma que, embora o Brasil tenha 3,06% da
população mundial e responda por 3,5% do PIB mundial, descarta 5,5% do total dos
resíduos planetários. Como chegou a esses números?
Minha pesquisa envolveu a investigação de dados primários e documentais, lastreada com grande preocupação sobre dados quantitativos e qualitativos. Importa lembrar que não basta obter números, mas também conhecer os processos que os geram e o que tais números significam em seu conjunto na escala do tempo e do espaço. Há muitas fontes, e cito algumas aqui: Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre), Banco Mundial, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), agências das Nações Unidas e Ongs como a Greenpeace. Foi um trabalho imenso. Também examinei legislações, sobretudo o Plano Nacional de Redução das Emissões (PNRE) e a lei nº 12.305, de agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).
Cerca de 1 milhão de catadores
reciclam 13% do lixo produzido no Brasil. Sem eles, não haveria indústria de
reciclagem. Mesmo assim a sociedade os discrimina.
A que o sr. atribui a má performance brasileira?
Há uma performance cultural, de percepção, de índole antropológica e simultaneamente geográfica. Como dizia Abraham Moles, vivemos numa sociedade que produz para consumir e cria para produzir, num ciclo em que a noção fundamental é a velocidade e a descartabilidade dos materiais. Ou seja: somos uma civilização dedicada a gerar lixo. O mundo gera 30 bilhões de toneladas de lixo por ano. Não há mais espaço para depositar resíduos, e a questão de onde colocá-los virou um enorme problema logístico. Nova York, hoje, descarta lixo a 500 km de distância.
O Brasil não fica atrás. Segundo o relatório de 2010 da Abrelpe, a média de lixo
domiciliar de cada brasileiro, de cerca de um quilo, é semelhante à de um
europeu. Porém, nossas classes afluentes geram muito lixo, enquanto as classes
humildes geram pouquíssimo. É assim que se chega a uma média europeia. Algo está
profundamente errado nisso, relacionado ao processo socioeconômico de geração de
lixo e agravado pela falta de política pública no setor.
Entre 1991 e 2000 a população cresceu 15,6%, mas o descarte de
resíduos aumentou 49%. Por que essa expansão perversa?
Em seu primeiro texto publicado, o geógrafo Milton Santos disse que o crescimento
urbano no Brasil estava muito ligado à sedução do consumo. Segundo ele, a
percepção do consumo atrai as pessoas, induzindo-as, por exemplo, a trocar uma
casa bem montada por um automóvel, uma despensa forrada de alimentos por um
aparelho eletrônico. Daí que, segundo o Relatório 2010 da Abrelpe, em um ano a
população cresceu 1%, mas a produção de lixo cresceu 6%. De modo geral, a
geração de lixo também está crescendo por causa das altas expectativas de
consumo.
Em seu livro o sr. afirma que, embora o Brasil tenha 3,06% da
população mundial e responda por 3,5% do PIB mundial, descarta 5,5% do total dos
resíduos planetários. Como chegou a esses números?
Minha pesquisaenvolveu a investigação de dados primários e documentais, lastreada com grande preocupação sobre dados quantitativos e qualitativos. Importa lembrar que não basta obter números, mas também conhecer os processos que os geram e o que tais números significam em seu conjunto na escala do tempo e do espaço. Há muitas fontes, e cito algumas aqui: Associação Brasileira de Empresas de Limpeza
Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), Compromisso Empresarial para Reciclagem
(Cempre), Banco Mundial, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
agências das Nações Unidas e Ongs como a Greenpeace. Foi um trabalho imenso.
Também examinei legislações, sobretudo o Plano Nacional de Redução das Emissões
(PNRE) e a lei nº 12.305, de agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional
de Resíduos Sólidos (PNRS).
Como impedir o lixo de triunfar sobre a civilização?
A alternativa mais viável é reduzir o consumo. Além dos três “R” conhecidos –
Reduzir, Reutilizar e Reciclar -, é preciso agregar outro “R” essencial:
Repensar. No caso, repensar como produzimos, consumimos e descartamos. Mudando
hábitos e estilo de vida, consumindo menos, o cidadão retroage positivamente em
toda a cadeia produtiva. Com isso, os resíduos que geram o lixo final
diminuirão.
Cerca de 70% dos municípios brasileiros não dão destinação correta
aos resíduos, e 59% desse material é depositado a céu aberto. Até os resíduos
recicláveis separados pela coleta seletiva em cidades como São Paulo e Rio de
Janeiro acabam em lixões. Como mudar esse quadro?
Em termos de reciclagem, não há nenhuma cidade de porte no Brasil com reciclagem em bons termos. Segundo o Cempre, mesmo em Curitiba – cidade icônica em termos de reciclagem – 60% dos materiais que estão nos aterros poderiam ser recuperados,
mas não estão sendo. Com base na Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, em 80%
do território nacional há lixões e aterros conO sr. diz que 1 milhão de catadores de lixo são heróis do trabalho de combater o
desperdício, mas são discriminados pela sociedade. Falta dinheiro?
Falta vontade política. Segundo o Cempre, em 2008 o Brasil
reciclou 7,1 milhões de toneladas de lixo. Desse total, que corresponde a 13% do
lixo nacional e a 25% do lixo seco, 98,1% é trabalho de catador, de acordo com o
Instituto Socioambiental. Sem os catadores, no dia seguinte a indústria de
reciclagem entraria em colapso. Além disso, os aterros teriam seu tempo de vida
útil reduzido, haveria mais lixo nas calçadas, mais enchentes e assim por
diante. Embora façam um trabalho imprescindível, os catadores são discriminados.
Apenas 142 municípios brasileiros (2,5% do total) mantêm parceria com os
catadores.
O sr. é um crítico da obsolescência precoce dos produtos industriais.
A solução cabe ao Estado?
Na forma como ocorre, é difícil acreditar em ação concreta do Estado. Em termos de lixo, há três atores básicos: Estado, sociedade e cidadão. Como o Estado não faz a parte dele, as empresas se sentem à vontade para fazer o que bem entendem e o cidadão termina órfão de pai e mãe. Em suma: ou esse Estado é mudado ou não se vai resolver nada. Quanto à obsolescência, não há solução. Não existe planeta para suportar a obsolescência precoce. Precisamos de produtos duráveis, porque a descartabilidade propicia o
avanço da geração de lixo.
Só 2,5% dos municípios do país mantêm parceria com
catadores
Quais são as atividades que mais produzem lixo?
Em primeiro lugar, a pecuária, seguida pela mineração e pela agricultura. Esses
segmentos respondem por cerca de 90,5% do lixo planetário. Na sequência, temos o
lixo industrial com 4%, o entulho com 3%, e os resíduos sólidos urbanos com
2,5%. Note-se que, embora o lixo domiciliar seja 2,5% nessa conta, corresponde
de fato a quase todo o lixo mundial. Tudo ou quase tudo que se produz no mundo
vai parar no saquinho que colocamos na calçada ou na lixeira do prédio. Segundo
a norte-americana Annie Leonard, professora da Universidade Cornell, atrás de
cada saquinho desses há 60 outros sacos de lixo descartados no processo de
produção. O lixo domiciliar é o último avatar na ciranda da geração de
lixos.
A nova Política Nacional de Resíduos Sólidos estabelece regras para a
coleta e o armazenamento de lixo urbano. Mas não há aterros sanitários nas cidades. Para que serve a lei?
Essa lei permite muitas ressalvas. Por que ela ficou 19 anos perambulando nos corredores de Brasília? Em primeiro
lugar porque há um jogo de forças relacionado à sua normatização. Essa demora
gerou problemas e um enorme passivo ambiental. Em segundo lugar, temos a lei e
eu digo: e daí? No Brasil, há leis que não pegam e não-leis que pegam. Um
exemplo de não-lei que as prefeituras inventam é a criação de planos de gestão
de resíduos no papel. Pode-se dizer que haverá fiscalização – mas qual
fiscalização?
A do Estado atual? Para complicar, a lei abre uma brecha enorme para a
instalação de incineradores, um grande descalabro. Ao contrário do que dizem os
defensores da ideia, não adotaremos um padrão de Primeiro Mundo ao permitirmos
sua instalação. A Alemanha recicla 48% do lixo e tem incinerador; os Estados
Unidos reciclam 31% e têm incinerador; a Bélgica e a Suécia, 35%. Porém, o
Brasil recicla só 13%! Antes, temos de repensar, reduzir, reutilizar e reciclar,
retardando ao máximo a necessidade de incineradores porque geram uma série de
substâncias maléficas à saúde, aceleram a retirada de materiais da natureza,
queimam matériaprima útil e afetam o trabalho dos catadores e da indústria
recicladora. Muitos municípios brasileiros não têm mais espaço para aterros. Mas
as políticas para mitigar o problema não foram implantadas. Assim, nesse exato
sentido os incineradores não constituem solução.
Amazônia, Pantanal, mangue, cerrado… Estamos colocando lixo em locais onde
isso jamais poderia acontecer. Como mudar esse quadro? Pela Constituição, o
Estado tem a prerrogativa da gestão dos resíduos sólidos. Cabe a ele mudar a
situação. Porém, pelo jeito deve demorar muito.
Fonte: Revista Planeta
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